Uma calça precisava de reparo e precisei de uma costureira. Encontrei uma no caminho do Anil, na rota que sempre faço. Não propriamente um estabelecimento, mas uma portinha que dava para um pequeno aposento, aberta diretamente para a rua, quase às margens do canal e sob a sombra da amendoeira.
J. L. Tejo
sábado, 12 de outubro de 2024
sábado, 18 de novembro de 2023
Do amor que não veio e sufis girantes
A resposta demorou e o sinal amarelo foi aceso em minh'alma. Sem afobação, falamos para nós mesmos, mas as coisas do coração não funcionam assim — não seriam do coração se não fossem afobadas. Enfim a resposta veio mas polida, quase seca. Foi então que compreendi que não, que o Amor não viria. Isso na quarta. Na sexta já nos amassávamos no cruzamento sob as luzes da fachada da farmácia. O Amor veio, enfim. Se ficará? Do sábado em diante tudo são cinzas mornas. O Amor tem seus próprios caminhos. Nada resta; apenas a impressão indelével de que não é mesmo para mim.
quarta-feira, 6 de setembro de 2023
O rosto de pedra e visões no espelho
É ainda escuro quando desperto. O sono fugiu para longe apesar de minhas tentativas de agarrá-lo pelos calcanhares, batendo suas asas notívagas janela afora. Pois bem, mister sono; tenho outras formas de me ocupar até a aurora. Façamos um exercício de imaginação criativa junguiano, que tal? Antes o banimento inicial: quatro colunas de fogo e fumaça me cercam, o sigilo de proteção ativado, o rosnado do animal de poder. Magickamente equipado, retorno ao monumento do sonho que tive na semana passada, um colossal rosto de pedra de elmo grego encravado na Presidente Vargas. Contemplo o portento. O mistério permanece — está aí desde épocas imemoriais, dissera o guia turístico evocado do mesmo sonho.
sexta-feira, 28 de julho de 2023
A dança no reino das pedras. E de heroísmo.
Quando operei a tireoide sonhei com uma entidade que habitava um mundo de pedras — calcárias, brancas, um reino de giz de quadro-escolar — e usava máscara, das tribais. Dançava e agitava o maracá, talvez usasse guizos na canela mas o tempo apagou os detalhes oníricos. Eu tinha levado o "On the road" de Kerouac para ler no hospital mas evidentemente não consegui. Já em casa, ainda sob os efeitos dos anestésicos, eis o sonho com a entidade-de-máscara-guizo-e-reino-de-pedra-branca.
sexta-feira, 12 de maio de 2023
De rascunhos e oceanos
Eu deveria ter escrito isto no final do ano — afinal, tenho anotado aqui nos rascunhos coisas como "Carta do dia - O Sol", "Início do verão - 21 de dezembro" e "Comunismo solar". São ideias que se imbricam, portanto. Sobre o comunismo solar se trata de uma referência a Löwy e seu ecossocialismo, o futuro, tolos chamarão utópico, do pleno aflorar das potencialidades humanas em um planeta ecologicamente restaurado. Não é possível falar em socialismo nestas tumultuosas primeiras décadas do século XXI sem que se lhe grafe em letras verde-primavera.
sábado, 10 de dezembro de 2022
As filhas do rei da Turquia. E sobre liberdade.
Busco as encantarias do Nordeste. Aquele sacerdote em trajes mouros paira sobre minha cabeça; o manto, escarlate, tem bordados em ouro e esmeralda. Usa turbante tal como imame dos Ahl al-Bayt fosse. Nos dedos de rei Salomão, aneis das pedrarias mais diversas – agrada-me o vermelho escuro como vinho, e também o azul cor de mar e, apesar dos rápidos gestos, percebo o amarelo luz de manhã.
terça-feira, 18 de outubro de 2022
De velas e manhãs. E o trânsito das estações.
No Facebook, postei Coração-de-corvo do povo Mandan das Grandes Planícies e sonhei com três espíritos totêmicos. Rostos graves e austeros, algo de incisivo, cada qual coberto de tinta — azul, amarelo e vermelho. Um recado cada um, uma frase, um lembrete, uma lição. Escusado dizer que ao acordar não me lembrava de rigorosamente nenhuma palavra do que me diziam.
segunda-feira, 6 de junho de 2022
Caminhos de prata. E do tempo relativo.
Ao longo do asfalto, gotas de cinza tinta. Parecia um caminho salpicado de prata, como são na imaginação aqueles que levam a castelos de reis ou outros portentos de contos de fadas. Sincronicamente, ao virar a esquina já é o ouro de carambolas amarelas pelo chão. Há uma caramboleira por perto. Não sou exatamente fã da fruta — às vezes trago para casa para fazer suco para meu filho, mas é raro. Porém sempre admirei o formato estrelado e, agora, ao passar pela calçada de carambolas caídas, me sinto transitando por uma via láctea de ouro.
segunda-feira, 21 de março de 2022
De capturas da alma
Navego pelas ruas de Jacarepaguá, como sobre o dorso de camelos. A caminho do Anil, após o supermercado, há uma larga calçada com gramado e árvores enormes. Deixei meu filho na escola e passei por lá em uma gloriosa manhã ensolarada. Nada em especial, um dia de semana qualquer, carros e pessoas em sua labuta cotidiana. Foi quando ao passar pela calçada do gramado senti aquilo. Tentarei explicar na medida do possível. Foi uma espécie de golpe, mas na alma, como, imagino eu, é a sensação de morrer. A alma prestes a alçar voo, uma sensação entre o desmaio e a maior lucidez possível, algo de nós partindo e sendo portanto necessária a maior firmeza de espírito para não deixá-lo fugir.
sábado, 13 de novembro de 2021
De janelas indiscretas
Nesta tarde era um cheiro de incenso, forte, como defumadores de igreja. Agredia as narinas mas tinha esse efeito colateral de erguer o espírito, e não é possível ficar imune à atmosfera mística que esses cheiros trazem. Levanto os olhos do livro e apuro o olfato, como um bicho, absorvendo as sensações pelo nariz. Vêm junto Santo Expedito e São Sebastião, Santa Luzia e o Caboclo das Sete Encruzilhadas.
sexta-feira, 22 de outubro de 2021
Ainda sonhos, mar e flores
Senti uma terna emoção e os olhos marejaram de leve quando ouvi Vanessa da Mata na área de serviço. Algum vizinho deixara o som nas alturas. Foi a parte do "sou perigosa/ sou macumbeira" em "Não me deixe só". É que lembrei da velha senhora do meu sonho nesta manhã. Foi a segunda parte do sono; por volta das oito da matina levantei para dar uma mijada e, como não tinha compromisso cedo, pude voltar para o leito. Rápido Morfeu me arrastou novamente para suas profundezas e os castelos oníricos se formaram, feitos de uma argila de modelar que só o inconsciente conhece.
sexta-feira, 27 de agosto de 2021
O sol, garranchos e cupins
O dia não cessa de amanhecer, o sol é apenas uma estrela da manhã, diz Thoreau. E é muito revigorante sentir o astro neste agosto invernal, ainda que em um céu pálido e desbotado como papel crepom azul-bebê. Debruço-me na janela para ver os prédios e as pessoas e então ajeito minhas plantas, a minha velha pimenteira acossada pelos pulgões. O sol derrama energia; sinto-me como conectado a uma tomada.
quinta-feira, 12 de agosto de 2021
De solidão e silêncio. E samurais.
Falei da dinastia Yuan no post anterior e senti vontade de ler sobre suas tentativas de invasão ao Japão em fins do século XIII. Deu água, literalmente — o kamikaze, vento divino, destruiu a armada sino-mongólica. Orgulhosos guerreiros do Khan afundando como chumbo, agarrados a tábuas, paus e destroços, pulmões explodindo e roxos de afogamento. Da costa os samurais observam, a salvo dos tufões, prontos para degolar os sobreviventes que baterem nas praias. Katsu!, grita o mestre zen. O país do sol nascente não será vassalo alheio.
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