sábado, 13 de novembro de 2021

De janelas indiscretas


Nesta tarde era um cheiro de incenso, forte, como defumadores de igreja. Agredia as narinas mas tinha esse efeito colateral de erguer o espírito, e não é possível ficar imune à atmosfera mística que esses cheiros trazem. Levanto os olhos do livro e apuro o olfato, como um bicho, absorvendo as sensações pelo nariz. Vêm junto Santo Expedito e São Sebastião, Santa Luzia e o Caboclo das Sete Encruzilhadas. 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Ainda sonhos, mar e flores


Senti uma terna emoção e os olhos marejaram de leve quando ouvi Vanessa da Mata na área de serviço. Algum vizinho deixara o som nas alturas. Foi a parte do "sou perigosa/ sou macumbeira" em "Não me deixe só". É que lembrei da velha senhora do meu sonho nesta manhã. Foi a segunda parte do sono; por volta das oito da matina levantei para dar uma mijada e, como não tinha compromisso cedo, pude voltar para o leito. Rápido Morfeu me arrastou novamente para suas profundezas e os castelos oníricos se formaram, feitos de uma argila de modelar que só o inconsciente conhece.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

O sol, garranchos e cupins


O dia não cessa de amanhecer, o sol é apenas uma estrela da manhã, diz Thoreau. E é muito revigorante sentir o astro neste agosto invernal, ainda que em um céu pálido e desbotado como papel crepom azul-bebê. Debruço-me na janela para ver os prédios e as pessoas e então ajeito minhas plantas, a minha velha pimenteira acossada pelos pulgões. O sol derrama energia; sinto-me como conectado a uma tomada. 

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

De solidão e silêncio. E samurais.


Falei da dinastia Yuan no post anterior e senti vontade de ler sobre suas tentativas de invasão ao Japão em fins do século XIII. Deu água, literalmente  o kamikaze, vento divino, destruiu a armada sino-mongólica. Orgulhosos guerreiros do Khan afundando como chumbo, agarrados a tábuas, paus e destroços, pulmões explodindo e roxos de afogamento. Da costa os samurais observam, a salvo dos tufões, prontos para degolar os sobreviventes que baterem nas praias. Katsu!, grita o mestre zen. O país do sol nascente não será vassalo alheio.

sábado, 31 de julho de 2021

O frio de julho e o sábio chinês


Meados do ano, impressiona como os dias passam velozes. A pandemia aumentou a sensação de urgência do tempo. Um ano e meio de semirreclusão, o que não quer dizer em todo caso que tenha sido tempo perdido. A adaptabilidade humana é coisa admirável. Aprendemos a viver com o vírus, na medida do possível, na resiliência obstinada que marca a espécie. E cá estamos neste julho de 2021 da Era Cristã, o ar seco deste inverno rascante maltratando nossas narinas de alérgicos.

sábado, 10 de julho de 2021

Lugares e o rugido do vento


Sinto-me bem nesta tarde de domingo. Toquei uma punheta no chuveiro quente e enquanto me seco sou invadido por uma inexplicável euforia. Penso em um poema de Nanao Sakaki que verto para o português abaixo:
De manhã
após tomar uma ducha fria
— que erro! —
olho no espelho.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

De feras, sereias e assombro


Sonhei com o puma à tarde ou foram os quadrinhos de Western que tenho baixado online, ou ainda as cenas das tundras do Alasca que postei no Facebook? A alma urbana às vezes escapa para longe. Seríamos muito pouca coisa sem toda essa carga imagética que faz a cabeça girar. Não se trata do escapismo de quem não quer enfrentar a realidade dada; mas de entender que essa mesma realidade é fluida e multifacetada e que é um desperdício enorme limitarmos a vida àquilo que conhecemos diretamente. Tenha sonhos, portanto. Leia livros e histórias em quadrinhos. Assista séries, é claro. Tudo aquilo que fala à imaginação, diria Henry Miller.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Sociedade de classes e mares agitados


Na sociedade capitalista a importância do "ter" é levada ao paroxismo. Muito já se falou sobre isso e me reporto a Marx na Miséria da filosofia (1847): em nossa época, é mais fácil produzir o supérfluo do que o necessário. É uma cultura de desperdício. De Marx pra cá só piorou, evidentemente. Tempos de obsolescência programada, de produzir para quebrar para então produzir novamente. E comprarmos de novo. O planeta não aguenta esse ritmo. Vai se exaurindo, consumido, chupado até o último suspiro. Não adianta aqui trocar a sanha produtivista capitalista por outra, socialista ou supostamente socialista — a URSS no passado e a China de hoje representam os mesmos padrões ecologicamente deletérios. Pois não se trata aqui de emular o capitalismo e de dar ao produtivismo uma cor "vermelha", e sim de colocar em xeque o próprio produtivismo. Falo aqui portanto na abordagem ecossocialista, a única que permitirá o desabrochar, com toda a pertinência da analogia botânica, da sociedade nova do futuro.