sábado, 10 de julho de 2021

Lugares e o rugido do vento


Sinto-me bem nesta tarde de domingo. Toquei uma punheta no chuveiro quente e enquanto me seco sou invadido por uma inexplicável euforia. Penso em um poema de Nanao Sakaki que verto para o português abaixo:
De manhã
após tomar uma ducha fria
— que erro! —
olho no espelho.

Lá, um cara engraçado,
cabelos grisalhos, barba branca, pele enrugada,
— que bosta! —
um velho pobre e sujo.
Esse não sou eu, com certeza não é.

Terra e vida
pescar no oceano
dormir no deserto com as estrelas
construir um abrigo nas montanhas
cultivar do jeito antigo
cantar com os coiotes
cantar contra a guerra nuclear —
eu nunca me cansarei da vida.
Agora tenho dezessete anos,
um rapaz muito bonito.

Me sento na posição de lótus,
meditando, meditando para nada.
Súbito ouço uma voz:
"para se manter jovem,
para salvar o mundo,
quebre o espelho".
Por que penso no poema? Há a temática do banho tomado, que no poema é frio mas que aqui é cálido como um abraço. Mas mais do que isso me encanta o amor de Sakaki pela vida, não um hedonismo egocentrado mas militante e engajado — as referências a guerra nuclear e a salvar o mundo mostram isso. É uma solidariedade que é inerente ao melhor espírito revolucionário, generoso, que sabe que não pode ser livre enquanto todos não o sejam ou, em outras palavras, que sabe que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos, como dizem Marx e Engels no "Manifesto".

Encanta-me também no poema de Sakaki a presença da natureza. Oceano, deserto, montanhas e coiotes. Mas nem precisamos ir muito longe. Agora por exemplo vou comprar pão, já domingo à noite chuvoso. Os cariocas somos suscetíveis ao frio; qualquer coisa abaixo de 20º é glacial para nossos padrões. Pois embrulhado em meu capote quase estanco, na esquina, assombrado como o vento ruge firme. Folhas sobem feito turbilhão de tornado. Nenhuma viva alma na rua neste domingo frio. O silêncio me faz lembrar, guardadas as devidas proporções, o poema de Frost sobre o bosque nevado. A noite na Freguesia de Jacarepaguá não é nevada, mas escura, silenciosa e fria. Também agora uma inexplicável euforia me atinge.

Ayers Rock.

Se estamos falando da natureza e seus assombros quero também falar de Ayers Rock, porque estou insone às 3 da manhã e o nome ressoa insistentemente na minha cabeça.

A primeira vez que tomei conhecimento de Ayers Rock foi em Umberto Eco:

... E intuí que um plano único unia Avalon, a hiperbórea, ao deserto austral que abriga o enigma de Ayers Rock

("O pêndulo de Foucault",  trad. Ivo Barroso)

Morada dos espíritos, lá se ergue no coração da Austrália, Uluru dos aborígenes Pitjantjatjara, pista de pouso para discos voadores. Que belo ringue de patinação! Aquela enorme superfície pétrea, de laranja cor de tijolo, puxando para um marrom pálido que lembra as brincadeiras com argila de modelar na infância, aquele platô mineral recortado contra o céu das bandas meridionais do mundo.

Lá do alto de Ayers Rock, no centro de tudo, observo o alinhamento estelar. Penso agora em palavras como zênite e seu oposto nadir, e na contradição e no equilíbrio de contrários. Ayers Rock me surge então como o locus da unidade, trono de onde um plenipotenciário Lúcifer contempla a Criação.

Há lugares de poder, isso não se discute.

Mas proponho um desafio: fazer do chão sob nossos pés também lugares de poder. O ponto, logo, é trazer o poder conosco. Ayers Rock então é onde piso, seja a passarela da Leopoldina ou a plataforma da Central do Brasil rumo à audiência judicial em Bangu.

Bangu como exemplo, apenas porque pensei em Cecília. Mas poderia ser qualquer lugar do planeta, naturalmente. 

A imagem do post, retratando esse portento geológico australiano de sonho, é de Ondrej Machart (@ondrejmachart) no Unsplash.