sábado, 31 de julho de 2021

O frio de julho e o sábio chinês


Meados do ano, impressiona como os dias passam velozes. A pandemia aumentou a sensação de urgência do tempo. Um ano e meio de semirreclusão, o que não quer dizer em todo caso que tenha sido tempo perdido. A adaptabilidade humana é coisa admirável. Aprendemos a viver com o vírus, na medida do possível, na resiliência obstinada que marca a espécie. E cá estamos neste julho de 2021 da Era Cristã, o ar seco deste inverno rascante maltratando nossas narinas de alérgicos.

E, inverno e pandemia, nada melhor que um conhaque em casa — ou a bebida de preferência, contanto que permita ao espírito devanear. Vasculhemos alguns temas aleatórios, caso nem o Youtube nem a Netflix tenham algo especialmente interessante no momento. Magia apotropaica, que tal? Bom assunto para nos debruçarmos. O de Filosofia do Direito do Bobbio também está por aí, esperando sua vez. E assim passamos o tempo. Mais bebida? Claro.

E faz mesmo muito frio. Penso agora no Oriente, talvez por ter lido uma referência ao "Tao Te Ching" em Henry Miller ou talvez por ter passado algum tempo ouvindo trilhas sonoras de super sentais japoneses dos anos 80. Como quer que seja a minha bússola pessoal está voltada agora para os extremos da Ásia. No ar noturno o dragão chinês faz sua dança agitada mas harmoniosa, em um mar de seda e fogos de artificio. 

Certo, esta noite quero consultar o I Ching. 

Improvisarei com uma moeda de 1 real. Vou ao armário da sala e procuro minha carteira. No bolsinho pesco uma, brilhante, e a examino atentamente como se tivesse sido retirada da bolsa de Lao Tsé em pessoa. "Cara", traço contínuo, "coroa", traços quebrados. Poderia ser o contrário, basta que você defina como quer fazer. 

Pronto, Gafanhoto?

Vejamos, a pergunta. Como é de praxe, não direi aqui do que se trata. Fosse um Miller ou um Bukowski não teria pudores em expor minha vida pessoal, mas sendo um Tejo mais introvertido, me reservo o direito de reter informações. Em todo caso diz respeito à minha vida pessoal, naturalmente. E é pensando na pergunta que faço os lances, uma, duas, até a sexta vez que completa o hexagrama. E ei-lo, o hexagrama 54, "O casamento da jovem".

Uau. Casamento? Mas é tudo hiperbólico, alegórico, catacrético, metonímico, perifrástico, eufemístico. O oráculo não se entrega tão facilmente, não senhor. Despista e confunde. Com outra ferramenta com a qual estou mais familiarizado, o tarô, também é desse jeito. Claro, há vezes em que A é A, simples assim. Mas não raro é Z também, e todo o alfabeto entre eles! A intuição que lute. Vem de dentro, fervilha, se convulsiona. E aquilo que era oculto se mostra límpido como água.

A explicação abaixo é retirada daqui:

O Livro recomenda evitar qualquer atitude imediatista, que só quer tirar vantagem das situações do momento. Quem age assim, fica ao sabor dos estímulos passageiros e perde de vista as grandes metas que dariam sentido e dignidade à existência. O homem de qualidade, como não perde de vista os fins superiores, reconhece com clareza a ação adequada e justa em cada passo de seu caminho.

Só posso imaginar que a jovem está casando prematuramente demais. Imposição das circunstâncias? Talvez a família ávida pelo dote. Falo figuradamente, repito. Ou ela própria imagina ser o momento, quando na verdade ainda há muita água para correr.

Sem pressa, sem ansiedade. Esperar é preparar para o futuro, disse Leon Trotsky. 

Jovem casadoira, ainda não é o momento. Preparemos o futuro. O noivo, esse rapaz impaciente, que espere. Se é que será ele a merecer a honraria.

O sábio chinês acena de um distante jardim de distantes épocas, talvez lá pelos tempos da dinastia Yuan, quando os mongóis dominavam a China. Decerto um contemporâneo de Kublai Khan, ele cujas conversas com Marco Polo imaginadas por Ítalo Calvino tanto alimentaram minha fantasia. Aqui já são torres de jade decoradas com cascos de tartarugas, amuradas de ametista e lápis-lazúli. 

Encerro o I Ching e saúdo a Linha do Oriente, macumbeiros entenderão. O dragão celeste sorri nesta fria madrugada de julho. Vou dormir.

A imagem é "Walking on Path in Spring" de Ma Yuan (c. 1190 - 1279).