quinta-feira, 12 de agosto de 2021

De solidão e silêncio. E samurais.


Falei da dinastia Yuan no post anterior e senti vontade de ler sobre suas tentativas de invasão ao Japão em fins do século XIII. Deu água, literalmente  o kamikaze, vento divino, destruiu a armada sino-mongólica. Orgulhosos guerreiros do Khan afundando como chumbo, agarrados a tábuas, paus e destroços, pulmões explodindo e roxos de afogamento. Da costa os samurais observam, a salvo dos tufões, prontos para degolar os sobreviventes que baterem nas praias. Katsu!, grita o mestre zen. O país do sol nascente não será vassalo alheio.

Mas agora a madrugada fenece, já no nosso Rio de Janeiro contemporâneo. Ouço música e meu ecletismo me leva de Korn a Elton John, coração rasgado em pontadas. Não perguntem a respeito de quê; como a gazela de Exupéry em "Terra dos homens", é a nostalgia de algo que não se sabe. E já está quase amanhecendo quando meu amigo Magno Souza entra em contato via messenger.

"É o silêncio que me incomoda", ele diz. Também está particularmente sentido neste fim de madrugada. Concordo com ele. Esta terra é habitada? Ou é tudo eco solitário, silvos sem resposta, murmúrios soprados por buracos de paredes abandonadas, casas de bonecas de tempos passados dos quais nada resta exceto, digamos, arrependimento, pesar e culpa? Evidentemente guardo essas imagens mentais para mim, não sendo minha intenção piorar o estado de espírito do meu amigo. Escolho melhor as palavras, como que as sacando de um repertório de mágico, e me junto a ele na refrega contra o silêncio desta solitária e evanescente madrugada.

Não que a solidão seja ruim. Ao menos não de todo.

Sobre isso fiz esta versão de Shams al-Din Hafiz Shirazi, postada aqui, conforme a reproduzo abaixo:

Não desista da solidão tão
     rápido.

Deixe que ela
     corte
          mais
               um pouco.

Deixe que em você
ela fermente
e amadureça
como poucos elementos
     humanos
     ou
     divinos
          podem fazer.

Esta noite
meu coração
sente falta de algo

que fez
meu olhar suave
minha voz terna

minha
     necessidade
          de Deus
absolutamente
     clara.

Como o leitor pode entender, quanto mais solitário mais perto de Deus, ou uma carolice qualquer do tipo.

É bonito, e se não fosse eu não teria perdido meu tempo sobre os versos. Mas como não tenho a pretensão da santidade, não posso deixar de deplorar essa falta de contato humano. Concordarei com meu amigo Magno Souza — o silêncio incomoda. Precisamos de algazarra e de estampido, rojões e um bumbo bem forte vibrando os tímpanos. É que o silêncio talvez nos faça ouvir certas coisas, não? Em sentido figurado. Quanto maior o barulho menos espaço aquelas vozinhas têm, menos prestamos atenção a elas. Também isso não expresso a Magno, fico na minha ruminando essas incômodas impressões existenciais. Tornarei ao assunto em breve e adianto que tem relação com algo que vi em Jung.

Bem, somos animais gregários. É uma das primeiras lições que aprendemos na faculdade de Direito. Por sermos seres sociais é que o Direito é, justamente, a organização da vida social, conforme a definição enxuta e perfeita de Clóvis Beviláqua. Organizar o quê?, se vivêssemos isolados cada um em seu cume distante? Mas aí não seríamos o que somos. Precisamos da comunidade.

E é nessa estranha comunidade de dois, conversando sobre samurais e tempestades, que eu e Magno Souza aguardamos o sol, o frio da madrugada já se desmanchando como aquele algodão doce do parque na boca. Sobrevivemos a mais uma, hein, meu velho? Enquanto não soubermos lidar com o silêncio e com a solidão será assim. Conseguiremos um dia, quem sabe? Faz parte do nosso processo de amadurecimento, mas também isso não digo a ele.

A imagem que ilustra o texto foi retirada aqui.