Falei da dinastia Yuan no post anterior e senti vontade de ler sobre suas tentativas de invasão ao Japão em fins do século XIII. Deu água, literalmente — o kamikaze, vento divino, destruiu a armada sino-mongólica. Orgulhosos guerreiros do Khan afundando como chumbo, agarrados a tábuas, paus e destroços, pulmões explodindo e roxos de afogamento. Da costa os samurais observam, a salvo dos tufões, prontos para degolar os sobreviventes que baterem nas praias. Katsu!, grita o mestre zen. O país do sol nascente não será vassalo alheio.
Mas agora a madrugada fenece, já no nosso Rio de Janeiro contemporâneo. Ouço música e meu ecletismo me leva de Korn a Elton John, coração rasgado em pontadas. Não perguntem a respeito de quê; como a gazela de Exupéry em "Terra dos homens", é a nostalgia de algo que não se sabe. E já está quase amanhecendo quando meu amigo Magno Souza entra em contato via messenger.
"É o silêncio que me incomoda", ele diz. Também está particularmente sentido neste fim de madrugada. Concordo com ele. Esta terra é habitada? Ou é tudo eco solitário, silvos sem resposta, murmúrios soprados por buracos de paredes abandonadas, casas de bonecas de tempos passados dos quais nada resta exceto, digamos, arrependimento, pesar e culpa? Evidentemente guardo essas imagens mentais para mim, não sendo minha intenção piorar o estado de espírito do meu amigo. Escolho melhor as palavras, como que as sacando de um repertório de mágico, e me junto a ele na refrega contra o silêncio desta solitária e evanescente madrugada.
Não que a solidão seja ruim. Ao menos não de todo.
Sobre isso fiz esta versão de Shams al-Din Hafiz Shirazi, postada aqui, conforme a reproduzo abaixo:
Não desista da solidão tãorápido.Deixe que elacortemaisum pouco.Deixe que em vocêela fermentee amadureçacomo poucos elementoshumanosoudivinospodem fazer.Esta noitemeu coraçãosente falta de algoque fezmeu olhar suaveminha voz ternaminhanecessidadede Deusabsolutamenteclara.
Como o leitor pode entender, quanto mais solitário mais perto de Deus, ou uma carolice qualquer do tipo.
É bonito, e se não fosse eu não teria perdido meu tempo sobre os versos. Mas como não tenho a pretensão da santidade, não posso deixar de deplorar essa falta de contato humano. Concordarei com meu amigo Magno Souza — o silêncio incomoda. Precisamos de algazarra e de estampido, rojões e um bumbo bem forte vibrando os tímpanos. É que o silêncio talvez nos faça ouvir certas coisas, não? Em sentido figurado. Quanto maior o barulho menos espaço aquelas vozinhas têm, menos prestamos atenção a elas. Também isso não expresso a Magno, fico na minha ruminando essas incômodas impressões existenciais. Tornarei ao assunto em breve e adianto que tem relação com algo que vi em Jung.
Bem, somos animais gregários. É uma das primeiras lições que aprendemos na faculdade de Direito. Por sermos seres sociais é que o Direito é, justamente, a organização da vida social, conforme a definição enxuta e perfeita de Clóvis Beviláqua. Organizar o quê?, se vivêssemos isolados cada um em seu cume distante? Mas aí não seríamos o que somos. Precisamos da comunidade.
E é nessa estranha comunidade de dois, conversando sobre samurais e tempestades, que eu e Magno Souza aguardamos o sol, o frio da madrugada já se desmanchando como aquele algodão doce do parque na boca. Sobrevivemos a mais uma, hein, meu velho? Enquanto não soubermos lidar com o silêncio e com a solidão será assim. Conseguiremos um dia, quem sabe? Faz parte do nosso processo de amadurecimento, mas também isso não digo a ele.
A imagem que ilustra o texto foi retirada aqui.