sexta-feira, 27 de agosto de 2021

O sol, garranchos e cupins


O dia não cessa de amanhecer, o sol é apenas uma estrela da manhã, diz Thoreau. E é muito revigorante sentir o astro neste agosto invernal, ainda que em um céu pálido e desbotado como papel crepom azul-bebê. Debruço-me na janela para ver os prédios e as pessoas e então ajeito minhas plantas, a minha velha pimenteira acossada pelos pulgões. O sol derrama energia; sinto-me como conectado a uma tomada. 

"Você está tapando o sol!", ralha meu filho às minhas costas, fazendo seu ensino à distância no notebook. Lembro do diálogo entre Diógenes e Alexandre que meu pai vivia me contando. O filósofo relaxado ao ar livre quando seu admirador, o conquistador macedônio, imponente em seu cavalo, oferece-lhe qualquer pedido. Peço apenas que Alexandre não me tape o sol, responde Diógenes dando um tapa no equino e afastando a sombra.

Bem, saio da janela, Alexandre de nada, e o pequeno Diógenes retoma a lição online. Sexta-feira, o segundo melhor dia da semana, o melhor sendo o sábado, naturalmente. 

Agora pego uma caderninho de anotações. Ganhei em um almoço de advogados, confraternização de fim de ano que fizemos em um restaurante no centro da cidade. Uma colega teve o simpático gesto de levar uma lembrancinha para cada um, a mim coube o caderninho, capa cinza e preso por elástico da mesma cor, linhas de um roxo escuro. O papel é cor de sorvete de baunilha. Utilizei muito esse caderninho para rascunhar ideias e esboços, aproveitando o ócio do trajeto entre casa e escritório. Muitos poemas do Outras vulgaridades nasceram a partir dele, por exemplo, assim como coisa e outra que de tão ruins preferi deixar esquecidas nas páginas de creme.

E, o caderninho. Não são mais rascunhos de má poesia que me chamam a atenção. É uma espécie de grimório mágicko que tenho agora diante de mim. São fragmentos que retirei de algum lugar, algumas observações sobre magia, aleatórias e soltas como os pensamentos de Pascal. O autor é um certo mago Tagus; se possui relação com o militante socialista José Tagus não sei dizer. Como quer que seja, copiei esses trechos de alguma fonte, em um garrancho tão horrível que mesmo eu tenho dificuldades para traduzir. Ah, Jean-François Champollion. Foi assim que se sentiu? Você com os egípcios e sua intraduzibilidade, eu com o meu caderno cinza de folhas creme e letras terríveis de entender.

Não me entrego tão fácil. Enfrento as linhas, disseco as palavras, olho sob a luz. Meu Deus, preciso de um caderno de caligrafia. Mas tudo vai se tornando familiar e compreensível. 

Sobre o tempo mágicko

Assim mesmo, eis o título do fragmento. 

Dá o papo, frater Tagus.

O universo está repleto de sinais. Entrar em "estado mágicko" (banimentos etc.) é apenas ficar atento a isso, é apenas prestar atenção. Mesmo se estivermos desatentos a magia ocorre ao nosso redor.

Entrar em tempo mágicko: abrir-se para sincronicidades, padrões de energia e insights.

Novamente, os sinais não surgiram porque você entrou em tempo mágicko, e sim apenas fizeram-se notar com tal mudança de estado. Sempre estiveram lá.

Entrar em tempo mágicko é, de certo modo, "sacudir" o censor psíquico (Carroll), fazê-lo relaxar seu controle.

Carroll não pode ser outro aqui senão o inglês Peter Carroll, cujo Liber Null, dentre outros trabalhos, é referência da magia do caos. Censor psíquico, isso eu sei bem, é o mecanismo de defesa pessoal que filtra as referências, digamos, astrais, que pululariam em todo canto, de modo que possamos nos focar no "real". Não fosse isso andaríamos por aí como sob efeito de alucinógenos. 

O bravo Tagus não fica nisso. Vejo que transcrevi também trechos sobre divinação. 

Não se prevê o futuro, porque não está consumado. Ao contrário, é uma potencialidade, um vir-a-ser. Está em aberto.

O método divinatório vai, e com base em indícios de agora, dizer como as coisas tendem a acontecer.

Eu não poderia concordar mais e é exatamente por isso que copiei os trechos, onde quer que os tenha visto. Sempre achei ridícula a ideia de "ler o futuro". Não se lê o que ainda não está escrito. A caneta-tinteiro está em nossas mãos, para ser mergulhada à vontade no nanquim acetinado de nossas esperanças e desejos. Generosamente; podemos lambuzar o papel sem parcimônia. 

Oh, já é noite, mister Tagus? O dia passou voando. Escrevo sob a luminária e a lâmpada espectral, tom de luz de cemitério, desperta traças e insetos menos cotados. Bailam em volta do halo luminoso. Pousam no meu braço, se enroscam nos meus pelos, batem suas pequeninas asas de lepidópteros. Talvez esteja delirando, mas me sinto devorado pelos cupins como se fosse um relicário antigo, algo do tempo de Akenhaton, madeira velha melada de betume. 

Entrar em tempo mágicko. Já falei sobre a magia do cotidiano em outro poema. Está no ar e basta olhos de ver. A esmagadora maioria da Humanidade não percebe isso, é claro, e lá vão os autômatos na sua labuta diária de zumbis. Lá na frente é o túmulo e já era. Quantas potencialidades são perdidas em vão ninguém pode imaginar. Uma hecatombe de proporções galácticas, estrelas se apagando antes de brilhar, sóis tragados pelo buraco negro da mesmice. 

A imagem do post, que publiquei há algum tempo no Facebook a propósito da mesma frase de Thoreau, é um detalhe do Arcano nº 19 ("O Sol") do tarô de Paul Foster Case e Jessie Burns Parke, para sua ordem Builders of the Adytum (1922).