sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Ainda sonhos, mar e flores


Senti uma terna emoção e os olhos marejaram de leve quando ouvi Vanessa da Mata na área de serviço. Algum vizinho deixara o som nas alturas. Foi a parte do "sou perigosa/ sou macumbeira" em "Não me deixe só". É que lembrei da velha senhora do meu sonho nesta manhã. Foi a segunda parte do sono; por volta das oito da matina levantei para dar uma mijada e, como não tinha compromisso cedo, pude voltar para o leito. Rápido Morfeu me arrastou novamente para suas profundezas e os castelos oníricos se formaram, feitos de uma argila de modelar que só o inconsciente conhece.

 

E que algazarra. Era um bar, como aqueles da Lapa ou da Santa Tereza dos bons tempos. Cheio, gente e música. Mas meu foco era a proprietária, grisalha, atrás do balcão. Sobre si um pequeno altar. Isso é comum nos botequins pelo Brasil – a imagem de santo num cantinho no alto, copo de cerveja ou lâmpada aos pés. Mas no caso do sonho era menos como uma tradição introjetada de um país de catolicismo sincrético e mais como prática mágicka consciente. Conforme a anciã nos explicava: vela verde para Oxóssi, i.e. São Sebastião, por exemplo. E no sonho via a imagem do santo, na parede alva do bar, irradiando sobre o público.

Uma dona de bar que também é mandingueira. Isso não é exatamente uma novidade. Mas ter surgido no meu sonho, quando há meses em razão da pandemia não piso em um bar, tem algo de significativo.

Meu saravá, velha macumbeira do meu sonho.

Mas não é a primeira vez que sonho com orixás. Há poucos dias mesmo sonhei com Ogum, um rápido cochilo de fim de tarde, e acordei cheio de energia. Era um espaço à beira-mar, como a Avenida Atlântica, sob um céu cinza de aço. O orixá não aparecia mas eu falava – interessante como esse elemento didático, o de explicação, aparece sempre em meus sonhos – dele, de como o rito de matriz afro era repleto de magia e então eu era banhado, como se estivesse recebendo um passe, por uma energia branca tipo lâmpada de poste. Ogum surgia no sonho, portanto, como vibração fotônica, feixe ionizado de prata viva, arroubo quântico estelar, entrando pelo ori, cabeça, o chacra sahasrara dos indianos, e daí preenchendo o campo anímico como água enche o vaso. 

Falemos de sonhos acordados, agora. O daydreaming, diriam os gringos. 

Por exemplo posso falar que são os estertores do inverno. A primavera se aproxima. Mas na janela da sala o clima é o do poema de Frost. Silêncio, muito silêncio. Vento frio balançando as árvores do condomínio, a lua se insinuando, mas sem força nenhuma, por entre nuvens e prédios. E o cheiro de mar, meu Deus, mesmo longe consigo sentir. 

O mar me persegue. Está até no meu extravagante nome, afinal. Acho que foi Sartre ou Exupéry (estou associando ambos porque Exupéry levava Sartre às lágrimas, como o filósofo existencialista conta em seus diários de guerra, e agora não lembro se li isso em um ou em outro) que disse que esse cheiro, o de mar, jamais é esquecido por um homem. Acredito nisso. Há sensações físicas indeléveis, inapagáveis. Sem estar no mar, a maresia me persegue.

E há as sensações puramente imaginadas, como por exemplo a de senti-la nos braços, ela que tem flores no nome. Quase literalmente ontem me perguntou se sou muçulmano. Ontem ou éons geológicos atrás, não faz diferença; o tempo não é relativo, Herr Einstein? Eu sou o Tempo, diz Allah, subhanahu wa ta'ala!, no hádice qudsi nº 4. E é preso nesse tempo, mas preso no sentido bom, o de reter o que vale a pena ser retido, que guardo comigo a sensação, ainda que imaginada, de tê-la nos braços, ela que tem flores no nome.

A imagem é "Moonlight Over The Ocean" por Marianna Foster.