sábado, 13 de novembro de 2021

De janelas indiscretas


Nesta tarde era um cheiro de incenso, forte, como defumadores de igreja. Agredia as narinas mas tinha esse efeito colateral de erguer o espírito, e não é possível ficar imune à atmosfera mística que esses cheiros trazem. Levanto os olhos do livro e apuro o olfato, como um bicho, absorvendo as sensações pelo nariz. Vêm junto Santo Expedito e São Sebastião, Santa Luzia e o Caboclo das Sete Encruzilhadas. 

Defumadores de igreja! Penso nesta passagem de Henry Miller:

Só conseguia lembrar-me de que a casa tinha um odor distintamente católico.

("Plexus", trad. Hélio Pólvora)

É coisa de alguém na vizinhança. Saio farejando. Vou à cozinha e me sirvo de um copo d'água. A janela da área de serviço está aberta. Aproveito, ainda sentindo o incenso, para olhar como está o céu e vejo-o plúmbeo, cinza escuro, puxado para prata. Cor de céu de chuva, de granizo e tormentas. Nuvens como palha de aço. Do outro lado do pátio interno vejo a área de serviço do apartamento de baixo. E, súbito, noto que a vizinha está lá, apenas em calcinha e sutiã. Mexe na máquina de lavar e outras tarefas domésticas, sem perceber – ou não se importando – que a voluptuosa bunda está exposta a olhares de vizinhos indiscretos, o contraste entre a pele escura e a calcinha bege.

Sei que cavalheiros não devem fazer isso, mas não sou de ferro. Discretamente me aproximo mais da janela, me posicionando o melhor possível para não ser notado, e sigo no meu momento voyeurístico. Poucas coisas são mais belas e íntimas do que uma mulher de calcinha e sutiã em afazeres do lar. Me lembrei de uma cena, também voyeurística e caseira, de anos atrás. Já contei dela em outra ocasião. Vou repuxá-la de memória...

Era nosso primeiro dia no apartamento da Lagoa Rodrigo de Freitas. Tudo muito novo, prédio, vizinhos e rua. O cenário era incrível daquele nono andar: a vista ampla das janelas era a Lagoa em si, o espelho de água cinza platinada refletindo edifícios e montanhas. Mesmo em dia claro era possível ver as antenas piscando, emitindo talvez sinais de rádio para Alfa Centauro ou Andrômeda, em todo caso captáveis por qualquer disco voador, fazendo um fantástico efeito de luz que tornava a sala de estar fantasmagórica quando à noite no escuro. Mas agora ainda era de tarde, talvez quatro ou cinco horas, o poente ainda uma tímida mancha vermelha começando a dar as caras.

E era embevecido vendo a Lagoa que percebi a moça na cobertura do prédio vizinho. Morena, talvez entre 18 e 20 anos, um pouco mais velha do que eu era na época. Cabelos presos, top e shortinho brancos. Pegou a vassoura e atacou com vontade o piso. Depois recolheu as roupas no varal, revelando as costas fortes. Em algumas partes precisava ficar na ponta dos pés, descalços, pés de bailarina urbana. Lembro-me de um filhote de pitbull que observava a cena. Também recebeu seus cuidados, água e ração, a troca do jornal mijado. Era incansável, a menina, as costas fortes já suadas, a bunda firme recheando o short branco. Eu, é óbvio, babava em assombro. Não sejam severos com os adolescentes — é o momento da vida em que tudo é encanto e susto.

Mas agora, voltando ao presente... Anos depois. Falei em adolescentes? Pois de novo eu, já barbado e pai, na clandestina admiração das curvas femininas, novamente observando vizinhas em afazeres domésticos.

A imagem do post é de Vidit Goswami (@viditgoswami) no sítio Unsplash.