segunda-feira, 21 de março de 2022

De capturas da alma


Navego pelas ruas de Jacarepaguá, como sobre o dorso de camelos. A caminho do Anil, após o supermercado, há uma larga calçada com gramado e árvores enormes. Deixei meu filho na escola e passei por lá em uma gloriosa manhã ensolarada. Nada em especial, um dia de semana qualquer, carros e pessoas em sua labuta cotidiana. Foi quando ao passar pela calçada do gramado senti aquilo. Tentarei explicar na medida do possível. Foi uma espécie de golpe, mas na alma, como, imagino eu, é a sensação de morrer. A alma prestes a alçar voo, uma sensação entre o desmaio e a maior lucidez possível, algo de nós partindo e sendo portanto necessária a maior firmeza de espírito para não deixá-lo fugir. 

Não parei nem sequer reduzi o passo. Segui andando como um autômato enquanto tudo ao redor parecia girar. Não era físico, como disse, mas algo que eu sentia na alma. De novo, foi como se o espírito quisesse ir embora. Utilizei minha força de vontade para mantê-lo no lugar, se é que se pode dizer assim. Alguns metros depois tudo passou, a vida retomou seu ritmo, carros e transeuntes em suas rotinas. Leigos, não poderiam supor que a alma deste sujeito por pouco não subiu. Olho para trás: uma larga calçada com gramado e árvores enormes, nada que estimulasse viagens do espírito. 

Ainda hoje sou cauteloso quando passo por lá. Um Triângulo das Bermudas em plena Freguesia de Jacarepaguá. Cuidado, desatento, que te capturam a alma.

Falando em um contexto totalmente diferente, também somos capturados de outras formas. Elas e seus olhares, sorrisos... Algumas frases. Talvez apenas uma postagem em redes sociais. E somos apanhados como tigres debatendo-se em redes fôssemos. 

O trágico para mim não está na captura, mas quando a captura se resume a lágrimas, corações lascados e bebedeira. E as clássicas mensagens humilhantes e chorosas às 6 da manhã, dia claro, quando todo o amor-próprio foi para as cucuias. 99,9% das vezes é assim. Ao menos comigo e, acredito, com você que me lê.

Não sei o porquê desse drama humano. Talvez compliquemos demais a vida ou, complicada que seja, nós temos o dom de torná-la ainda pior. As duas últimas mulheres que passaram por mim deixaram apenas terra arrasada, por exemplo. Os cavalheiros sabem o que isso significa, em horas de sono em branco, cabelos igualmente brancos e, sendo suscetíveis, estômagos e fígados reclamando.

Vale a pena?

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

(Fernando Pessoa, "Mensagem")

Sinceramente tenho minhas dúvidas. Não romantizo o sofrimento. Deixo isso para as ingênuas polianas que recebem a dor como um prêmio, algo que consola, à moda chiquista. Chiquista, bem entendido, aquilo que Chico Xavier e seu séquito fizeram do espiritismo kardequiano: um culto masoquista da dor onde sofrer é bom, vê se pode.

Ok, alguns apaixonados vão nessa linha. Rejeito. Se é para me deixar pior, prefiro estar sozinho.

Mas cessemos as perorações. Quero ler agora sobre Eric Bloodaxe, norueguês que foi rei da Nortúmbria. Não reparem mas os giros que faço têm tudo a ver. Ah, as aventuras desse viking. Quando penso nessas coisas lembro sempre de Fernando Pessoa em sua "Ode marítima", deplorando nossa vida civilizada em comparação com a vida rica e temerária dos piratas do passado. A releitura de Bernard Cornwell na Netflix fala à minha alma, a um sangue escandinavo e pagão que não tenho — ao menos não materialmente ou ao menos não nesta matéria, e qualquer hora falo de um sonho que tive anos atrás. Sim, os céticos zombarão. Problema deles. A série da Netflix tem muito de bosta, verdade seja dita.

Captura da alma, foi o tema deste texto. Em suas diversas acepções. Ainda que esteja escrevendo isso nos estertores de março, penso em certa luz de primavera, mesmo que estejamos — novamente em pensamento — em pleno janeiro de verão escaldante. Mas algo como as árvores e as nuvens, quiçá o cheiro no ar, tudo traz essa sensação de alma voando para longe.

A imagem é "Melankoli" por  Edvard Munch (1891).