quinta-feira, 3 de junho de 2021

De feras, sereias e assombro


Sonhei com o puma à tarde ou foram os quadrinhos de Western que tenho baixado online, ou ainda as cenas das tundras do Alasca que postei no Facebook? A alma urbana às vezes escapa para longe. Seríamos muito pouca coisa sem toda essa carga imagética que faz a cabeça girar. Não se trata do escapismo de quem não quer enfrentar a realidade dada; mas de entender que essa mesma realidade é fluida e multifacetada e que é um desperdício enorme limitarmos a vida àquilo que conhecemos diretamente. Tenha sonhos, portanto. Leia livros e histórias em quadrinhos. Assista séries, é claro. Tudo aquilo que fala à imaginação, diria Henry Miller.

Um esclarecimento. Do puma ou, caso prefiram, onça-parda, suçuarana, cougar, leão da montanha (há mais nomes?), não falarei. Direi apenas que a primeira vez que ouvi o nome foi na infância em um carro na zona sul do Rio de Janeiro. Tinham me dado um pacote de animais de plástico. Perguntava ao meu pai os nomes. Diante de um felino qualquer, não titubeou: "é um puma!". Hoje me parece mais plausível que fosse um tradicional tigre ou leopardo, mas doravante o bicho ficou sendo puma. E o puma me acompanha e não falarei mais. Acerca de quadrinhos de Western, por outro lado, já dediquei todo um post aqui no blog e me reporto a ele.

Um interregno.

Estou com fome mas me detenho agora no alimento do espírito: leio Jung e seu "Os arquétipos e o inconsciente coletivo". Como faltou luz na Freguesia estou à base do resto de bateria do laptop, o arquivo em PDF já fosco na tela. Tenho uma vela acesa ao lado e penso no desenvolvimento desigual e combinado trotskyano. Livros eletrônicos em aparelhos modernos secundados por pavio e cera de priscas eras.

Mas, Jung. Fala das sereias como representações da anima. Pertinente porque há uma dualidade forte: metade gente, metade peixe. Sedutoras com seu canto, para então... devorar marinheiros incautos. Por pouco escapaste, Ulisses, tu e tua tripulação. Nossa anima compreende os dois lados, atração e medo, e é a anima que invoco neste momento. Já outra noite e tento dormir. Tendo cochilado gostosamente à tarde, estou agora com insônia. Viro para um lado e para outro buscando em vão o sono. Olhos fechados, deixo os pensamentos vagarem em meio à cacofonia semionírica. Permito que um cenário luminoso surja, branco leitoso, então rochoso como um jardim clássico, bosques e fontes de gregos antigos. É ali que aguardo sua chegada. Que aparência terá ela? Imagino-lhe com a aparência das mulheres que amei, todas elas amalgamadas em feição única. Penso então que não é a anima que busco mas Sofia, a sabedoria.

Onde está a sabedoria?

Por que nos Evangelhos não se diz quem se casou em Caná? Simplesmente porque eram as bodas de Jesus, bodas de quem não se podia falar porque eram com uma pecadora pública, Maria Madalena. Eis por que então todos os iluminados, de Simão o Mago a Postel, vão procurar o princípio do eterno feminino num bordel.

(Umberto Eco, "O Pêndulo de Foucault", trad. Ivo Barroso).

Muita calma nessa hora, você que se melindra por pouco. Os personagens de Eco apenas conjeturavam.  

Num lupanar, a anima? Aceito.

Pecai por todos pecai com todos

(...)

Depois comigo.

(...)

Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.

(Manuel Bandeira, "Estrela da Manhã")

Pois enfim.

E você, suíço, voltemos a você. Ah, falavas do duplo nascimento de Héracles e sua similitude com o Cristo? Leiamos, pois. Bravata minha porque não aguento a leitura sequer de poucas páginas, bêbado como estou  — são 5:26 da madrugada de um domingo neste exato momento —, a cabeça girando diante do assombro psicológico da obra. Me afasto de Jung como me afastaria de um animal venenoso, horrorizado. Registro o número da página para retomar posteriormente a leitura, tão logo minha presença de espírito volte: 55, cinco duas vezes, meio dez, a metade do caminho. Até aqui de tão longe, não? Pois parece que começamos ontem.

A gente não parte, retoma o caminho, diz Rimbaud. E de fato acredito nessa progressão. O sujeito que se deita à noite não é o mesmo que acordou pela manhã. Mesmo que falemos em termos estritamente objetivos, o que não é possível em se tratando do animal humano, foram horas e horas de estímulos sobre os sentidos. Isso "encorpa" o caldo, entende? Imagens vistas, frases ouvidas. A televisão ligada. Somos alimentados a cada segundo. O que se faz com isso, é outra história. Quando se está um pouquinho mais atento cai a ficha: não é sobre receber, mas sim sobre aquilo que entregamos. Melhor dizendo, sobre como processamos o que recebemos — e o que devolvemos de volta!, com o perdão da redundância.

É que sou marxista e acredito que é a gente mesmo que vai mudar esse mundo, se ele puder ser mudado.

Claro, é possível colocar isso tudo sobre as costas dos anjos em celestiais esferas etc.

De sonhos e de feras, encerrando o texto. O velho pescador de Hemingway sonhava com leões, eu, com o puma.

A foto do post é via Wilson Chen (@wilsonch3n) no Unsplash.