sábado, 2 de janeiro de 2021

Sociedade de classes e mares agitados


Na sociedade capitalista a importância do "ter" é levada ao paroxismo. Muito já se falou sobre isso e me reporto a Marx na Miséria da filosofia (1847): em nossa época, é mais fácil produzir o supérfluo do que o necessário. É uma cultura de desperdício. De Marx pra cá só piorou, evidentemente. Tempos de obsolescência programada, de produzir para quebrar para então produzir novamente. E comprarmos de novo. O planeta não aguenta esse ritmo. Vai se exaurindo, consumido, chupado até o último suspiro. Não adianta aqui trocar a sanha produtivista capitalista por outra, socialista ou supostamente socialista — a URSS no passado e a China de hoje representam os mesmos padrões ecologicamente deletérios. Pois não se trata aqui de emular o capitalismo e de dar ao produtivismo uma cor "vermelha", e sim de colocar em xeque o próprio produtivismo. Falo aqui portanto na abordagem ecossocialista, a única que permitirá o desabrochar, com toda a pertinência da analogia botânica, da sociedade nova do futuro.

Seguindo o raciocínio, o "ter" é tudo — com o perdão da aliteração — e com base nisso somos julgados diariamente. Um profissional que não more em uma boa casa ou que não tenha um bom carro não é decerto um bom profissional. Se o adulto não saiu da casa dos pais por imperativos financeiros deve ter algum problema, se está desempregado é porque não quer trabalhar e assim por diante. A sociedade de classes tem rótulos prontos para todos aqueles que considera desajustados. Entre os ianques é pior: ainda que há tempos desacreditado, o american dream é impiedoso com os losers


Não tem muitos dias eu ouvi um papo de bar. Um tiozão de zap, essa fauna que ganhou a luz do dia na rabeira do bolsonarismo, dizia ao interlocutor em meio a goles de cerveja de milho transgênico que trabalhava desde os 14 anos e, já aos 60, nunca passara um único dia desempregado. Ora, ora, palmas para o gênio da raça. Desempregado é preguiçoso, prosseguiu o tiozão. Nessa ótica solipsista — a da realidade como fruto de nossas próprias impressões e sentires pessoais, e, ao extremo, como existente apenas em nossa cabeça — não se consegue enxergar que vivemos em um país em que a taxa de desemprego aumentou quase 30% nos últimos quatro meses de pandemia. É a realidade estrutural de um país de capitalismo tardio, que a ilusão meritocrática de um único sujeito não consegue elidir. Inúmeros arruinados para um caso isolado de sucesso. "Você consegue!", bradam os coaches. E a vida escorre "correndo atrás". Não deveria ser assim.

Agora, vejamos o seguinte. Esqueçamos a pressão da sociedade de classes e, ainda que por um instante, imaginemos que nada temos. O emprego, a casa, o carro — nada disso existe neste exercício mental que estou propondo. O que restará? Perguntas retóricas nem sempre têm resposta óbvia (quando as têm). Restará o que você é, essa é a resposta. Uma individualidade única. Uma unidade irrepetível, como diz o marxista polonês Adam Schaff. Ninguém no universo foi, é ou será igual. 

Sermos o que somos, soa estranho mas a ideia é essa. Jung e a integração do Self. Sem isso as conquistas exteriores, ainda que importantes, são apenas ilusórias. Conquistar o mundo e perder a alma, como no jargão evangélico.

Sobre a natureza, falada acima, o "Oráculo da Natureza" de Karin Gianasi me trouxe, em dias sequenciados neste início de 2021, "A tempestade" e "O furacão". Nada poderia ser mais promissor. Poucas coisas me deixam mais à vontade que céus fechados, tempo feio!, dizem os profanos. Nada de feio. Eu tinha entre 10 e 12 anos e voltávamos de ônibus do Aterro do Flamengo para Copacabana. Estava sentado na janela, aberta, recebendo a chuva que caía no rosto. Sentia-me dotado de uma grandeza enorme naquele momento, sensação estranha para um menino dessa idade, mas havia algo de muito nobre e romântico em ser atingido pela chuva noturna. O ônibus avançava rápido e com isso a sensação de viagem e travessia. Acabaram por fechar a janela, provavelmente por estar molhando os demais passageiros, pobres coitados incapazes de sentir a nobreza da chuva.

Tendo meditado sobre o oráculo, saudei Iansã, senhora dos raios, e então Castor e Pólux, que acalmam os mares a pedido dos navegantes. O mar da História é agitado, diz Maiakóvski na versão de Carrera Guerra, mas a tudo romperemos como uma quilha corta as ondas. Avante que navegar é preciso — no embalo, a imagem que ilustra o texto é "Tempest by Sounion" [Tempestade no Cabo Súnion, Grécia], pelo russo Ivan Aivazovsky (1856).