segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A lanterna do eremita e o cálice derramado


Não acreditem em quem diga ser possível prever o futuro. O método divinatório, qualquer que seja — cartas, runas, borra de café etc. — permite insights e a liberação das forças criativas do inconsciente. De posse desse substrato compreenderemos mais nosso momento, as circunstâncias que nos cercam e, pronto, cá estamos melhor municiados para enfrentar as contingências da vida.

Por exemplo: o que fazer? Não a pergunta leniniana mas o presente contexto de minha vida. Peço que compreendam que, por imperativos pessoais, não direi do que se trata. Digo apenas que consiste em determinada problemática por cuja relevância entendi por bem recorrer ao oráculo, coisa desnecessária caso a situação fosse mais clara. Vejamos. Uma tiragem de duas cartas, que tal? Não adoto, data maxima venia, os rebuscados métodos de "n" cartas, "cruz celta", cruz daquilo, o que não quer dizer que não respeite quem assim o faça. Está bem assim pra você? Perfeito, eu cá faço do meu jeito. E em meio à cacofonia cotidiana da manhã pesco, após firmar a pergunta, dois arcanos.


Utilizo o Waite-Smith. A inconveniência evidente desse deck é o fato das ilustrações darem pouca margem para interpretação, ao contrário da impessoalidade abstrata do Marselha: o praticante observa a cena estampada e contenta-se com aquilo que lá está. Ainda que saibamos que todo arcano é multifacetado e que não se reduz a palavras-chaves, e mais ainda, que o arcano deve ser compreendido à luz do contexto, da pergunta e das demais cartas que o acompanham, é muito fácil ceder à tentação, preguiçosa, de reduzir a leitura à ilustração. O próprio Waite, apesar de apontar significados ocultos por trás da aparência em seu clássico The Pictorial Key to the Tarot, dá margem a interpretações unilaterais quando diz, por exemplo sobre o 10 de Espadas, que dentre seus significados divinatórios está tudo que é sugerido pelo desenho. Mesmo que isso não mutile definitivamente a intuição criativa, lhe dá um duro golpe.

Feita a observação, passemos à leitura. 8 de Copas. Oito sendo o número do infinito, basta deitá-lo e temos um laço de Moebius. Seria a completude por excelência, ainda que não o Dez, propriamente o "'all complete' or 'fully accomplished'" (W. Wynn Westcott, Numbers, Their Occult Power and Mystic Virtues). Sobre Copas, é o elemento água; penso aqui em Oxum e no sentimentalismo, Copas que aqui é representada como taça mas é coração em outros decks. Sobretudo penso no chamamento confuso das águas da Ode Marítima de Pessoa. O mar é Iemanjá e não Oxum, bem entendido, mas o elemento é o mesmo. E tudo deságua no mar, não é? Há algo fantástico nisso, pois a água é, igualmente, o início de tudo, como as modernas teorias evolucionistas apontam.

Não vêem, acaso, os incrédulos, que os céus e a terra eram uma só massa, que desagregamos, e que criamos todos os seres vivos da água?

(Corão, 21:30, trad. Samir El Hayek).

Início e fim, eis o círculo completo, eis o Número Oito.

Agora observemos a ilustração da lâmina. À luz da lua melancolicamente um homem se retira, em meio a um charco ou pântano, ou, caso não queiramos pensar em algo estagnado, rios ou fluxos correntes (Copas é elemento água, tenho dito). Tem montanhas diante de si e está apoiado em um cajado. As taças estão às suas costas. A leitura óbvia é a de renúncia. Deixa algo para trás e, sendo o naipe de Copas, necessariamente é algo que fala ao coração e aos sentimentos. O personagem olha pra frente em seu cajado de andarilho. É um buscador. Caso sigamos adiante teremos o Nove, o Dez, o Valete e então ele, o Cavaleiro de Copas, ninguém menos que Sir Percival em sua busca pelo Santo Graal. As coisas caminham para isso. Escusado dizer que o cálice sagrado é único para cada um. Tenho isso para mim há muito tempo como uma verdade inconteste: o que é bom para um pode não ser tão bom para outro, pode aliás ser péssimo, péssimo esse que outrem almejaria com volúpia. Onde está seu tesouro está seu coração, como aparece nos Evangelhos. Fiquemos com o registro.

Mas deixemos que o próprio mister Waite se explique:

A man of dejected aspect is deserting the cups of his felicity, enterprise, undertaking or previous concern. Divinatory Meanings: The card speaks for itself on the surface, but other readings are entirely antithetical--giving joy, mildness, timidity, honour, modesty. In practice, it is usually found that the card shews the decline of a matter, or that a matter which has been thought to be important is really of slight consequence--either for good or evil. Reversed: Great joy, happiness, feasting.

Melhor é deixar para trás. Quem diz isso não é Gil?


A leitura estará incompleta sem o seu par, aqui no caso o Eremita. Os arcanos maiores são de mais fácil digeribilidade. São símbolos tão arraigados que o sentido em si salta aos olhos, com dois cuidados necessários: atentar para a plurivocidade já referenciada acima, que obviamente também aparece aqui, e para o fato de que surgem em uma tiragem diante dos grandes temas, ao contrário do caráter mais cotidiano e trivial dos arcanos menores.

O que o Eremita, ou Ermitão, representa? Salta aos olhos a ideia de retiro. Retira-se (para onde? deserto, caverna, floresta?), mas não para a inércia passiva — que surge melhor no Enforcado, ainda que não uma inércia desejada mas o estar-ali contra a vontade — e sim o isolamento fecundo. A melhor companhia é a nossa própria. Falar é fácil, mas que tal se olhar no espelho? Sem ruído ou interferência de fora. Talvez a imagem não seja das mais agradáveis, mas não é melhor encará-la? E paro por aqui para não parecer um escritor de autoajuda. Vocês entenderam o espírito do Eremita, ao menos essa faceta, essa possibilidade, essa dimensão. O Eremita carrega uma lanterna, convém notar. A descida à caverna não se dá às escuras. Para mim, o que nos ilumina nesse caso é toda experiência que trazemos conosco; se não a nossa própria, a experiência, digamos, dos antepassados. Nos livros ou no DNA, não importa, ou ainda no inconsciente profundo que luta sempre para vir à tona. O que quero dizer é que nenhuma experiência humana é tabula rasa. Recorramos a isso ainda que para, se for o caso, rejeitá-lo e buscar outras inspirações. Ou criar novos caminhos. Como quer que seja, retornaremos da caverna enriquecidos. O arcano sai de cena e se metamorfoseia em outro, na próxima tiragem, na próxima encruzilhada de nossa vida.

Enfim, é isso. Agora é sexta-feira 13 e me sinto repleto de força criativa. Estive mais cedo no fórum e a rotina forense de pandemia me inspirou alguns novos posts para o Juspublicista. Caso nasça um já é algo, pois a vida é pródiga em material mas somos garimpeiros limitados. Gosto disso de seguir adiante — o que não quer dizer que eu saiba exatamente fazê-lo com maestria —, mas como já tenho escrito muito sobre isso não vou cansá-los. Este aqui é meu texto definitivo, até agora, sobre o tema. Até agora, é claro. O espírito é esse mesmo.

Ah, sim. A imagem que ilustra o post é "The Hermit" por George Inness (1825-1894).