sábado, 1 de agosto de 2020

De guerra e paz. E a rã no tanque.


Começo o sábado debruçado sobre a "Historia Brittonum", ao menos tenho sua verbete na Wiki aberta aqui. Ainda não é o momento da leitura, que reservarei para o silêncio intimista da madrugada. Costumo fazer isso com os grandes temas que me interessam: deixo-os o dia inteiro maturando na aba do navegador, como um vinho ou um scotch, preparando o clima para a ocasião. Não faz diferença que seja um verbete da Wiki ou uma edição impressa de luxo — basta que aquilo alimente meu espírito. Não só de pão vive o homem etc., preciso me nutrir de leitura assim como de meu pão (Van Gogh).

Não faz diferença que seja um verbete da Wiki: faço questão de repisar o ponto. Não compartilho do desprezo diletante pela já clássica enciclopédia digital. Pode não passar pelo conselho editoral das grandes casas, mas isso não quer dizer que não esteja sob o escrutínio dos olhos vigilantes da comunidade acadêmica. Seus administradores fazem um bom trabalho e indubitavelmente a Wiki já se encontra no panteão das ferramentas imprescindíveis da vida cultural do século XXI, uma ferramenta, diga-se, colaborativa e pública — na medida em que isso seja possível na internet das grandes corporações.

Feita a digressão e de volta aos britânicos, sincronicamente vejo na Netflix o anúncio de "Cursed - A Lenda do Lago" (Cursed, 2020), com a dama do lago Nimue e tudo o mais do ciclo arthuriano.


A última ficção que consumi sobre o assunto foi a trilogia de Cornwell há alguns anos (de quem também li parte das crônicas saxônicas, como comentei aqui). Também irei à série no momento oportuno, sem muita sede ao pote porque apesar de boas surpresas a Netflix costuma frustrar. Minha lembrança mais antiga de Arthur são os desenhos da Record nos anos 80 e, já no início dos 90, uma edição infanto-juvenil que me assombrava com o Cavaleiro Verde.

Mas chegaremos a Arthur oportunamente. Deixo a aba do navegador aberta esperando a leitura e sinto a caravana do espírito rumando para outras paragens, na cadência morna do dorso de camelos. Agora o cenário é ocre, ouro, amarelo, palha, bege, âmbar e açafrão. A linha do horizonte contudo é azul metálico e o vento assovia agudo. Levante ou Magreb, cá estamos, nesses voos de pégaso sem sair do lugar.

"O Sr. fez viagens?
          Sim ou não?"
Mas como,
     se eu fiz voos infinitos
em dezenas de pégasos
               nestes 15 anos?

(Maiakóvski, "Conversa sobre poesia com o fiscal de rendas", 1926, trad. Augusto de Campos)

Levante, bem entendido, o "termo geográfico impreciso que se refere, historicamente, a uma grande área do Oriente Médio ao sul dos Montes Tauro, limitada a oeste pelo Mediterrâneo e a leste pelo Deserto da Arábia setentrional e pela Mesopotâmia" (Wikipedia, ela de novo). Não quis dizer que nos levantemos. Pode continuar a leitura no conforto da poltrona, por obséquio.

Por que os árabes? Porque tenho sentido pena do meu Oceano da paz, sem atualização desde fins de 2018. Mas pouco posso fazer. A vida não dá conta de tantos compromissos, reais ou imaginários. Vinte e quatro horas passam rápido. E não é apenas o tempo, é preciso também que a força criativa esteja calibrada; ainda que nem sempre estejamos produzindo conteúdo original — o último texto é uma tradução, com a segunda parte ainda por vir —, a inspiração segue sendo imprescindível para a escolha de repertório e sua conversão em post. Carrego uma saudável dose de perfeccionismo no ponto: são blogs que levam meu nome, afinal, e alguns inclui mesmo no meu Lattes. Isso não quer dizer, por outro lado, que manter blogs precise ser algo sério ou sisudo, mormente quando feito amadoramente. Mas sobre minha vida blogueira já falei aqui.

Acho importante que haja espaços como meu aludido blog islâmico. Os veículos de proselitismo ortodoxo pululam por aí, sob patrocínio — material ou ideológico, não raro ambos — iraniano ou saudita, conforme o caso. É preciso garantir que a dissidência tenha voz. É incrível que tachem uma religião como al-Islam, que alberga em torno de 1,4 bilhão de pessoas no mundo, como algo monolítico. Não é. Há uma riqueza de visões que precisa ser defendida e, mais do que isso, fomentada. Fui chamado de kafir [infiel] em um grupo shia brasileiro no Facebook por postar sobre o clérigo iraquiano liberal Ahmad al-Qabbanji. E isso porque tal clérigo dissera que a liberdade fortalece a fé. Basta isso para que fanáticos espumem pela boca. A maldição do fundamentalismo paira no ar e, como um câncer, é contagioso. Rotineiramente algum muçulmano da minha lista de contatos nas redes sociais me exclui— um meme, uma piada, um comentário irreverente e pronto, somos o próprio Shaytan em carne e osso. O resultado disso é o isolamento no gueto, naturalmente, uma "tribo" encerrada em si mesma ouvindo e lendo apenas o que é halal [lícito] aos seus próprios olhos. Ocorre que a vida real vai para além dos muros e quem vive em uma sociedade laica deve aceitar o ônus da pluralidade, sobretudo porque esses, tão ávidos em apontar o haram [proibido] alheio, são os mesmos que recorrerão à tolerância e à liberdade quando alvos eles próprios de preconceito. Como quer que seja tais sepulcros caiados não representam a totalidade. Aponto justamente isso, há de tudo. E quero ajudar a divulgar o que é bom e progressista.

Já outro sábado. É fim de tarde e estou no chão do quarto do meu filho, assistindo ele brincar. Uma doce letargia me invade, uma preguiça beatífica que me faz pensar na música de Gil e Donato.


Essa paz nirvânica nos acomete nos momentos mais diversos e não está subordinada às condições exteriores. Pode acontecer no próprio campo de batalha! Vem subitamente e nos envolve. "De repente me encheu de paz", diz a letra da música, tem algo aí do satori zen, abrupto como a rã de Bashô:

No tanque vetusto
um estalido na água:
— o salto da rã!


(trad. Primo Vieira)

Obviamente o turbilhão que é a vida logo nos coloca em estado vigilante novamente. Talvez o segredo do samurai seja este: a paz inabalável em meio ao conflito, um continuum fluindo feito rio. Estou pedra, sou pedra. Repita comigo, Gafanhoto.

Um dos conceitos de al-Islam mais incompreendidos no ocidente é o da guerra santa, al-jihad al-akbar, que para o profano consistiria em combater infieis. A noção talvez se aplicasse aos primórdios da religião quando, menos por expansionismo e mais por autodefesa, os primeiros muçulmanos se viam obrigados ao confronto militar. Mas jihad na etimologia é empenho, é esforço. A guerra santa tem um sentido que na verdade é profundo e transcendente: é a luta contra al-nafs, o ego, o conjunto de nossos defeitos e imperfeições. Dessa luta não há tréguas. Do mundo, podemos sossegar por uns instantes, enquanto assistimos nosso filho brincar.

A imagem do post é "The Arab Riders" por Giulio Rosati (1858-1917).