segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Sobre mortos e lembranças


É véspera do dia 31 de outubro, o dia que como se sabe é o Samhain, na raiz do moderno Halloween; ou Calan Gaeaf entre os galeses que me pegaram em sua magia céltica desde que verti para o português seus versos dos túmulos. Isso foi em 2013. Desde então estou enfeitiçado, "não sou mais dono do meu coração", como diz Maiakovsky. Ele, meu coração, está em algum lugar nas costas do Mar Irlandês sob o tremeluzente estandarte de Y Ddraig Goch, o dragão vermelho de Arthur ap Uther. E é, voltemos à data, o dia em que as fronteiras se tornam diáfanas e os mortos podem caminhar novamente junto a nós, viventes.

E sinto uma serena emoção ao pensar no meu pai, enquanto atravesso o sinal da esquina nessa noite de véspera do dia 31. É a lembrança do dia em que comemos pizza no Mister Pizza na Nossa Senhora de Copacabana com Bolívar, se não me engano- e é provável que eu me engane, como quer que seja naquele locus tão especial para mim que é Copacabana (versejei sobre o bairro aqui). Foi após "Goonies" no cinema. Meados dos anos 80, após isso os contatos -que nunca cessaram apesar do divórcio, destaco isso por justiça- foram se tornando menos dignos de nota, digamos assim. Talvez consequência do meu ingresso na adolescência, com toda rebeldia crítica que traz consigo, que meu pai, que tinha 50 anos quando nasci, já não poderia fazer frente, talvez a sua própria dificuldade em se atualizar e acompanhar esse fluxo incessante que é a vida. Como quer que seja, poucas lembranças são tão doces quanto a pizza pós-Goonies, páreo duro apenas com os jogos de Atari comprados na loja de pesca da mesma Rua Bolívar.

Lembro dessas coisas e sigo em frente. A vida, afinal, se realiza no movimento, na marcha inexorável que citei no texto anterior. E, lá na frente da rua, percebo que as árvores -Freguesia de Jacarepaguá ainda tem algo bucólico, felizmente- se avolumam fantasmagóricas e penso em bosques de bruxas, sombrios, como se bocas e olhos as árvores tivessem. Penso na reverência druídica às árvores, a sabedoria dos carvalhos, o sicômoro árvore da liberdade na música de Bob Marley.

E já é sexta, dia 01. Os mortos seguem circulando entre nós eis que se aproxima Finados. Estou voltando do IAB após nosso exitoso 2º Congresso de Direito & Liberdade Religiosa. Estou longe de ser religioso, se com isso nos referimos às religiões formais, muito menos cristão; mas esta noite o centro da cidade parece ter adquirido um clima de séculos atrás, pesado, medieval, católico. As velhas arquiteturas ajudam nesse sentido: o Theatro Municipal, a Biblioteca Nacional, todo um conjunto que cheira a passado e museu, e isso é bom- em mim o tech se imbrica com o clássico, é tudo questão de espírito e de momento. Ai do homem que é uma coisa só. Respeito apenas almas complexas como a minha. É a faceta, no que me diz respeito, que fala a um passado de missas, e me vêm à memória -à memória sim, creio que seja reminiscência de outras vidas, na medida em que acreditemos nisso- velas e incensários olorosos de inícios do século XIX ou mesmo antes. A trilha sonora é o som de órgãos das profundezas de catedrais sombrias, naturalmente. Há amores, quiçá proibidos, uma adolescente morena (ou de tranças louras?, essa minha memória de vidas passadas vai evanescendo, como é de ser, com o passar do tempo) que troca olhares comigo à sombra de um Cristo ensanguentado. Senti isso quando estive em Copacabana, de novo ela, há uns dois anos. Prédios antigos e tempo chuvoso me fazem reviver a sensação.

Pois bem, não é a meia dúzia de latinhas de, puá, Nova Schin que tenho diante de mim. Este texto tem sido desde a primeira linha sobre mortos e lembranças. E é oportuno aproveitar o ensejo para falar de outro tipo de "finado", aquelas pessoas de contato presencial ou virtual (são tempos de internet, afinal de contas) que acabam por resolutamente desaparecer de nossas vidas, motivos que sejam. Experimentem abrir as conversas mais antigas da caixa de emails: é uma pletora de nomes esquecidos, situações superadas, negócios há muito resolvidos.

Há um poema de Masaoka Shiki que se aplica a isso. Reproduzo abaixo como copiei há algum tempo, de tradutor desconhecido:

Quando olho para trás
há um vulto desconhecido
desfazendo-se em névoa.

Sempre que olho para trás
alguém que eu conheci
se perde na neblina.

No inglês: "While I turned my head/ that traveler/ I'd just passed... /Melted into mist".

Esse evanescer na névoa diz muito sobre a própria transitoriedade da existência. O "tudo flui" (panta rei) de Heráclito. As coisas vão ficando para trás e -falei isso alguns parágrafos acima- nós seguimos em frente.

Até que nós próprios nos tornemos, quando chegar nossa hora, também fumaça e névoa nas lembranças alheias.

A imagem do post é "Memory" por René Magritte (1948).