sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Pensamento soltos


Quatro e meia da manhã e ouço os metais de Fela Kuti ressoarem na cabeça. Mais sutil e concreto é o canto do passsarinho lá fora, até hoje desconheço a espécie mas faz um "fiuiii fiuiii" ritmado sempre a essa hora da madrugada. Conhecemos pouco as aves, males da nossa criação urbana, engaiolada, tecno-cinza e nano-gris. Sou entusiasta da modernidade mas esse fato não é algo que se negue. A meta, entendo eu, deve ser a do espaço sideral sem a perda de contato com o chão, e então me recordo de Maiakóvski em "A propósito disto", capítulo "O amor", sobre o pai ser o Universo e a mãe a Terra —  e ninguém menos que isso.

Bem, aves que cantam temos esta, Daúde, composição de Antônio Cícero e Caetano; ouço e ouço neste exato momento.


O primeiro verso fala em "estranha alquimia" e isso é sincrônico porque li há pouco em Jung, que tenho aqui do lado, que

a alquimia como filosofia da natureza, em vigência na Idade Média, lança uma ponte tanto para o passado (...) como para o futuro, a moderna psicologia do inconsciente ("Memórias, sonhos, reflexões", org. Aniela Jaffé).

A ideia da ponte é interessante: um fio contínuo de saberes. Porventura há soluções de continuidade na história humana? É nesse sentido que acalento em mim um certo otimismo, eu não diria positivista (no sentido comteano), mas o de acreditar que, apesar dos pesares, avançamos. Escrevi sobre isso há alguns anos, sobre como há uma marcha em curso, não idealisticamente falando mas "graças ao nosso trabalho cotidiano, humano, concreto". Quanto às manchetes no jornal que parecem dizer o contrário (e um país que alça o bolsonarismo ao poder sinaliza mais retroceder do que qualquer coisa), eu objetaria que a marcha é em frente, ok, mas não em uma linha reta inexorável e sim em espirais de curvas variáveis; o saldo final é sempre positivo, mas voltamos casas e avançamos outras.

Dois episódios fortuitos.

Inclusive isso é urban magick: os sinais pululam no cotidiano e a arte está em percebê-los.

Estava na estação do metrô da Uruguaiana, rumo a uma audiência em Botafogo. Desci as escadas apressado em vão: o trem já fechava as portas. Mas ainda tive tempo de ver, dentro do vagão, em pé e olhando para mim, um sujeito vestido de sobretudo e casaca como alguém do início do século passado. Talvez usasse uma cartola, por incrível que seja dizer isso, em todo caso algo antiquado sobre a cabeça. Apesar do clima chuvoso a vestimenta do cidadão destoava muito do carioca médio. Usava um comprido guarda-chuva como bengala. Nada obstante parecia jovem e tinha o rosto ornado por uma farta barba ruiva. Ficou me fitando, apoiado com as duas mãos em sua bengala-guarda-chuva, olhos sob o estranho chapéu, enquanto as portas do metrô fechavam e enfim lhe arrastaram de minha vista.

Que bizarro, pensei comigo.

Agora sobre cores, o segundo episódio do qual eu gostaria de falar. Na verdade ainda não se consumou e parece estar-aí como em suspensão no ar.

Falo da cor lilás que tem me perseguido. Ou roxo, violeta ou algum tipo próprio de azul, não sejamos rigorosos no quesito colorimétrico — tenho certeza que visualizaram o tom ao qual me refiro. "Lavanda" também é utilizado. É que a paleta da vida tem lançado mão generosamente dessa cor: por exemplo, vejo que é a cor das tranças da moça de penteado afro à minha frente. O lilás desce em cascatas grossas adornando cabeça, pescoço e ombros, algo como um manto cerúleo em plena glória. Mas não fiquemos nisso: mais tarde, já em Jacarepaguá, a rua Tirol às escuras rescende a roxo-lilás-lavanda-violeta, não sei por qual razão física, possivelmente luzes de alguma portaria ou apartamento.

Ocorre-me que o violeta é a dita cor da "espiritualidade máxima", associada ao tal Saint Germain. Isso pouco me diz ao intelecto ou à emoção, parecendo-me antes de tudo uma das crendices esotéricas contra as quais, nada obstante — ou mesmo por isso — buscador dos sinais, tento me precaver; mas é fato, voltando ao Jung acima, que há certas sabedorias "cristalizadas" no ar. E neste momento sinto a calidez da chama violeta lambendo tudo, como fosse um desinfetante do espírito varrendo os germes anímicos.

E a limpeza é importante porque o ar tem estado mesmo fétido, voltando à conjuntura brasileira. O noticiário tem sido um lamaçal tóxico e muita gente tem se abatido física e psiquicamente, afinal não faltam gatilhos. "Alguns, achando bárbaro o espetáculo,/ prefeririam (os delicados) morrer", diz o poema de Drummond. Mas não podemos nos deixar contaminar. A vida é uma ordem, segue o poeta itabirano, e é preciso viver até o fim o que nos cabe — aqui já Maiakóvski novamente. Erga a chama violeta ao seu redor, um escudo inquebrantável de energia vital para o cotidiano. Ou a cor que quiser, evidentemente. O vermelho da revolução caso nos sintamos mais bélicos, talvez um arco-íris multicolorido de tonalidades cambiantes. Ou cor nenhuma, se se considerar que é apenas a física trickster da natureza brincando com nossos sentidos.

Como quer que seja: guarda alta e queixo pra dentro.

A imagem do post é Newton em seus experimentos com prisma, via Smithsonian Libraries.