sábado, 1 de junho de 2019

De sonhos e poemas


Há algum tempo, sobretudo desde que meu filho nasceu, durmo pouco, algo entre quatro a cinco horas por noite. Um médico decerto teria arrepios com isso -e obviamente falo como leigo- mas dormir me parece algo como uma perda de tempo, um período de inatividade por horas (até oito se formos seguir a recomendação à risca!) que poderia estar sendo melhor aproveitado para o lazer, a leitura, o sexo etc. Eu diria mesmo -reitero que sou apenas um diletante- que tais horas de sono são péssimas do ponto de vista evolutivo, haja vista a vulnerabilidade diante de predadores e o desperdício de um tempo que melhor seria usado na busca de alimento. Como quer que seja, são demandas fisiológicas. Rendamo-nos a elas, pois, e extraiamos o que vem junto com o sono: o sonho. Trago à baila aqui o poema de Leminski: "A vocês, eu deixo o sono./ O sonho, não./ Esse, eu mesmo carrego".

E é sobre sonhos que eu gostaria de falar, mais precisamente sobre aquela zona de penumbra intermediária entre a vigília e o estado onírico, em um madrugada deste maio outonal. É assim: estou deitado de olhos fechados. O mundo gira e tudo avança em turbilhão, um fluxo veloz de forças, como uma montanha-russa, arrastando tudo como um furacão. A onda tem o aspecto de um dragão chinês e avança vertiginosa. Agito-me na cama. Como o mago caoísta que sou faço o banimento e interrompo o fluxo; recoloco as coisas em seu devido lugar, flutuando no centro da tormenta, e o mundo readquire sentido. Então estou em meu lugar de poder, e me refiro aos templos da mente, insondáveis ao escrutínio alheio. Faça-se a paz e a paz se fez.

Já agora converso com I. como ela é sempre, véu de muslima sobre os cabelos, mas não vejo seu rosto. O ambiente é intimista e parece um jardim à beira de um lago ou rio. Ela me explica certa conduta que tomara e ouço atenciosamente. Não me recordo do que se tratava. A cena surge em perspectiva, vejo a nós dois conversando sentados em um tronco de árvore e tudo vai evanescendo. Deixo I. em suas confissões e adentro o buraco negro onírico rumo a outras paragens do inconsciente.

Poderia dar milhares de exemplos de experiências como essas. Evidentemente eu não deixaria de lado essa rica fonte de inspiração, e ei-la capturada em meu manancial poético aqui, aqui e aqui, para ficarmos nestes poucos casos. Versejar a partir do sonho altera dialeticamente o processo criativo: ao invés de imaginar para escrever, escrevemos com base no imaginado, quero dizer, no sonhado. Generosamente o id nos entrega a matéria-prima, a esperar apenas pelo cinzel que vai lhe desbastar, podar excessos, dar coerência e unidade. A caneta -falo no sentido metafórico pois geralmente produzo ao computador- se converte no ponto de encontro entre dois mundos, o do sonho e o da vida, desempenhando papel propriamente mediúnico (de medium na etimologia, "meio").

Diz Jung: "Podemos constatar (...) [a intemporalidade das formas do inconsciente] na psicologia do primitivo: a palavra australiana 'altjira', por exemplo, significa, ao mesmo tempo, 'sonho', 'país dos espíritos' e 'tempo' no qual os seus antepassados vivem e continuarão a viver. É, segundo dizem, o 'tempo em que não havia tempo'" (in "Comentário psicológico sobre o Livro Tibetano da Grande Libertação", apud "Espiritualidade e transcendência", ed. Brigitte Dorst). O sonho como o locus do eterno, do permanente, em oposição à transitoriedade e efemeridade da vida material. No sonho nos movemos na atemporalidade, como a Guerra de Tróia para Moses Finley ("a timeless event floating in a timeless world").

A imagem que escolhi para ilustrar o texto é "Sleep and his Half-brother Death" (1874), retratando os irmãos Hypnos (Sono) e Thanatos (Morte), conforme o mito grego, por John William Waterhouse.