terça-feira, 26 de março de 2019

Faroeste dos cínicos


O carinho que nutro pelo gênero western remonta a diversos momentos da pré-adolescência: comprei uma "Tex" na banca da esquina da Barata Ribeiro com Santa Clara para ler na viagem que faríamos a Aracaju, terra da família materna. Com a acessibilidade dos voos domésticos hoje em dia parece surreal se deslocar do Rio de Janeiro ao Nordeste por ônibus, de dia e meio a dois na estrada, mas era comum na época. Haja chão, portanto, e eis-nos munidos de gibis diversos para suportar a monotonia do trajeto. A viagem em si era um cenário de "Tex", Arizona ou Colorado remoto, mato, subidas e descidas, terra. E enquanto o ônibus rolava pela poeira da BR, Tex Willer era emboscado pelo astuto apache. Ao término da viagem Aracaju também era em si, é claro, um Oeste distante para um menino da zona sul do Rio de Janeiro, já às portas do semi-árido nordestino e com suas ruas de chão batido, início dos anos 90.

Não era só "Tex": aliás o ranger, imbatível, irritava-me. Preferia a narrativa mais humana, e portanto dramática, de "A história do Oeste" (nos anos 70 publicada como "Epopeia Tri" pela Ebal), com seu rosário de herois palpáveis, que amavam, morriam e eram sucedidos por novos. "Zagor" e seu sci-fi e também os filmes, como "Dança com Lobos" (Dances with Wolves, 1990) de Kevin Costner e, motivo para meu resoluto engajamento na causa indígena, o pungente livro de Dee Brown, "Enterrem Meu Coração na Curva do Rio" (Bury My Heart at Wounded Knee, 1970), cuja narrativa do genocídio ameríndio pelas mãos do colonizador branco me arrancava lágrimas de indignação. Havia também a literatura menor, de bolso, séries de livrinhos vendidos nas bancas de jornais com nomes como "Chumbo grosso", "Chumbo quente" etc.

Talvez o fascinante na temática seja a narrativa de superação. O cenário inóspito de pradarias e desertos faz nossa imaginação urbana ter vertigens. Penso aqui na "Ode Marítima" de Pessoa, onde o bardo português contrasta a vida dos piratas -ousada e sangrenta- com a sua própria pacífica "vida sentada, estática, regrada e revista". O gênero heroico há tempos imemoriais se presta a isso. A Ilíada despertava a "fanfarronice guerreira" entre os gregos, diz Garaudy. Projetamos no mito heroico o que gostaríamos de ser. 

Agora entremos no mote deste texto, com spoilers, "Os Oito Odiados" (The Hateful Eight, 2015), o filme que eu gostaria de indicar: aqui o Tex unidimensional paladino da justiça sai de cena e em seu lugar entra uma pletora de personagens odientos, conforme o nome indica. É o Tarantino clássico, o locus cinematográfico do anti-heroi. De início a paisagem gelada prende a atenção, com o fantasma da nevasca que se aproxima. O meio glacial também aparece em "O Regresso" (The Revenant, 2015) com Leonardo DiCaprio interpretando esplêndido o histórico explorador Hugh Glass. O cenário branco de gelo rivaliza com os ambientes áridos e desérticos dos faroestes tradicionais, mas é só uma mudança no teatro de operações: o drama humano é o mesmo.

E que humanos, os de Tarantino. Digo no parágrafo acima que a figura do "mocinho" é inexistente. O mais próximo disso seria o major Marquis Warren, defendido por Samuel L. Jackson. Mas trata-se de um sujeito retirado de forma conturbada do serviço militar e convertido em caçador de recompensas, o que lhe coloca na zona cinza reservada aos renegados. Sua aptidão para atrocidades aparece também quando narra, já em um estágio avançado do filme, a tortura e o estupro que cometera contra o filho do general confederado Sandford Smithers (interpretado por Bruce Dern); narrativa grotesca, repleta de flashbacks tragicômicos, com o intuito de forçar o velho militar a reagir para que, alegando legítima defesa, Warren possa matá-lo. Ainda que a violência seja contextualizada (Warren assim procedera para vingar os soldados negros mortos pelas tropas sulistas lideradas por Smithers, e além disso o filho do general caçava negros em troca de recompensa), um sadismo atroz permeia a cena.

Daisy Domergue é interpretada por Jennifer Jason Leigh. Talvez seja a personagem mais atraente de todas: transpira perfídia e malícia, mesmo levando bofetões a três por quatro de seu captor, o também caçador de recompensas John Ruth (Kurt Russell, grande). Não é possível não se empolgar com os giros na trama e a pobre Daisy -na verdade integrante de um bando perigosíssimo- tendo momentos de passageira vitória sobre seus algozes. É um primor a cena já próxima do desfecho, com a tensão psicológica e reviravoltas no embate entre Daisy, Warrren e Chris Mannix (tocado por Walton Goggins), já estropiados e mal se aguentando de pé. É interessante na película que os grandiosos cenários de faroeste -desérticos ou, como é aqui, nevados- apareçam apenas em flashback. O filme todo se passa entre claustrofóbicas quatro paredes, o Armarinho [Haberdasher] da Minnie, em estilo detetivesco: dentre os oito "odiados" (na verdade seriam nove, se incluirmos o condutor de diligências O.B. [James Parks], mas secundário que é para a trama não entra na contagem), há suspeitos e impostores.

Em 2017, quando assisti "Hatfields & McCoys" da Netflix, comentei em meu perfil no Facebook:


Ao invés de amargurados e alquebrados, "Os Oito Odiados" tem cínicos e farsantes. Isso também é humano, demasiado humano, diria Nietzsche e, agora à moda de Terêncio, nada do que é humano nos deveria ser estranho: é justamente essa matéria-prima humana que é interessante. O mocinho impávido Tex é um pé no saco, lembra os "campeões em tudo" do poema de Pessoa.