terça-feira, 5 de março de 2019

Por que o Iluminismo não foi a era da razão



Inaugurando o blog, traduzo abaixo -fonte ao final- um texto sobre um tema que me é muito caro: as Luzes, das quais, como marxista, sou tributário. O autor sustenta a tese de que o período não foi o de uma apologia à razão fria, ao contrário do que o senso comum deixa transparecer.

A imagem que ilustra o post, utilizada no texto original, é "Un dîner de philosophes" ("Um jantar de filósofos"), por Jean Huber (1772).

Por que o Iluminismo não foi a era da razão

Henry Martyn Lloyd

Do outro lado do Atlântico grupos de intelectuais fizeram uma convocação para a guerra. A cidadela sitiada a ser defendida, afirmam, é a da ciência e da política baseada em fatos e evidências. Esses cavaleiros do progresso -como o psicólogo Steven Pinker e o neurocientista Sam Harris- condenam o aparente ressurgimento da paixão, emoção e superstição na política. Eles dizem que a base da modernidade é a capacidade humana de controlar forças disruptivas de forma racional e com a cabeça fria. O que precisamos é dar um "reboot" no Iluminismo, portanto.

É incrível que tal visão cor-de-rosa da dita "Era da Razão" seja tão similar à imagem divulgada por seus ingênuos detratores. A imagem pejorativa do Iluminismo vai desde a filosofia de G. W. F. Hegel à teoria crítica da Escola de Frankfurt de meados do século XX. Tais pensadores identificam uma patologia no pensamento ocidental que iguala racionalidade com ciência positivista, exploração capitalista e a dominação da natureza- e mesmo, no caso de Max Horkheimer e Theodor Adorno, com nazismo e o Holocausto.

Contudo, por partirem do pressuposto de que o Iluminismo foi um movimento da "razão contra a paixão", apologistas e críticos são dois lados da mesma moeda. Esse erro coletivo é o que torna o clichê "Era da Razão" tão poderoso.

As paixões -afetos, desejos, apetites- são antepassados do moderno entendimento de emoção. Desde os antigos estoicos, a filosofia geralmente via as paixões como uma ameaça para a liberdade: os fracos eram escravos delas, ao passo que os fortes se firmavam na razão e na força de vontade, e portanto se mantinham livres. A contribuição do Iluminismo foi acrescentar a ciência a essa imagem da razão, e a superstição religiosa à noção de servidão passional.

Mas dizer que o Iluminismo foi um movimento do racionalismo contra a paixão, da ciência contra a superstição, da política progressista contra o conservadorismo tribal é um erro profundo. Essas afirmações não refletem a rica textura do próprio Iluminismo, que deu alta importância ao papel da sensibilidade, do sentimento e do desejo.

O Iluminismo começou com a revolução científica de meados do século XVII e culminou na Revolução Francesa em fins do XVIII. Hegel no início do século seguinte foi um dos primeiros a partir para a ofensiva. Disse que o tema racional concebido por Imannuel Kant -o filósofo iluminista por excelência- produziu cidadãos alienados, frios e distantes da natureza, sendo o racionalismo assassino do Terror Francês sua consequência lógica.

Todavia o Iluminismo foi um fenômeno diferente; a maior parte de sua filosofia estava distante do kantianismo e mais ainda da versão do kantianismo feita por Hegel. A verdade é que Hegel e os românticos do século XIX, que se acreditavam inspirados por um novo espírito de beleza e sentimentalismo, evocaram a "era da razão" para servir de contraste às suas próprias concepções. Seu sujeito kantiano era um espantalho, como todo o racionalismo dogmático de sua visão do Iluminismo.

Na França, os filósofos eram surpreendentemente entusiastas das paixões e desconfiados das abstrações. Ao invés de afirmar que a razão era o único meio de combater o erro e a ignorância, o Iluminismo francês enfatizou o papel das sensações. Muitos pensadores iluministas advogavam uma versão plurívoca e lúdica da racionalidade, que se imbricava com as particulares das sensações, da imaginação e sua personificação. Contra a introspecção da filosofia especulativa -René Descartes e seus seguidores eram frequentemente o alvo preferido- os filósofos se voltaram para fora, e colocaram à frente o corpo como o ponto de engajamento passional com o mundo. Poderíamos ir além e dizer mesmo que o Iluminismo francês tentou produzir uma filosofia sem a razão.

Para o filósofo Étienne Bonnot de Condillac, por exemplo, não faria sentido falar da razão como uma "faculdade". Todos os aspectos do pensamento humano nascem dos nossos sentidos, ele dizia- especificamente, a habilidade de buscar as sensações prazerosas e fugir das dolorosas. Esses impulsos dão nascimento à paixão e aos desejos, e daí então para o desenvolvimento da linguagem e todo o florescer da mente.

Para evitar a armadilha das falsas impressões e se manter o mais próximo possível da experiência sensorial, Condillac preferia as linguagens "primitivas" em lugar daquelas baseadas em ideias abstratas. Para Condillac, a racionalidade propriamente requereu sociedades para desenvolver meios de comunicação mais "naturais". Isso significa que a racionalidade é necessariamente plural: varia de lugar para ligar, ao invés de existir de forma universalmente indiferenciada.

Outra figura totêmica do Iluminismo francês foi Denis Diderot. Largamente conhecido como o editor da ambiciosa "Enciclopédia" (1751-72), muitos de seus irônicos e subversivos artigos foram escritos por ele mesmo- uma estratégia utilizada, em parte, para evitar a censura francesa. Diderot não expôs sua filosofia na forma de tratados abstratos: assim como Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e o Marquês de Sade, Diderot era mestre da novela filosófica (bem como em ficção pornográfica e experimental, sátira e crítica artística). Um século e meio antes de René Magritte escrever a icônica frase "Isto não é um cachimbo" sob sua pintura "A traição das imagens" (1928-9), Diderot escrevera um pequeno conto chamado "Isto não é um conto" (Ceci n’est pas un conte).

Diderot acreditava na utilidade da razão na busca pela verdade- mas também possuía um forte entusiasmo pelas paixões, particularmente quando se tratava de moralidade e estética. Como muitas figuras do Iluminismo escocês, como David Hume, ele acreditava que a moralidade estava fundada na experiência sensorial. O julgamento ético estaria muito próximo, se não indistinguível, do julgamento estético, Diderot afirmava. Julgamos a beleza de uma pintura, de uma paisagem ou do rosto da pessoa amada da mesma forma que julgamos a moralidade do personagem de um romance ou de uma peça ou de nossas próprias vidas- ou seja, julgamos o bom e o belo diretamente e sem necessidade da razão. Para Diderot, portanto, eliminar as paixões resultaria apenas em uma abominação. Uma pessoa sem a capacidade de ser afetada, seja pela ausência de paixões seja pela ausência de sentidos, seria moralmente um monstro.

O fato do Iluminismo celebrar a sensibilidade e os sentimentos não implica na rejeição da ciência, contudo. É o oposto: o indivíduo mais sensível -a pessoa com a maior sensibilidade- era considerado o melhor observador da natureza. O exemplo arquetípico era o do médico, sintonizado com os ritmos corporais dos pacientes e seus sintomas particulares. Já, ao contrário, o exemplo de inimigo do progresso científico era o sistemático especulativo- o médico cartesiano, que via o corpo apenas como uma mera máquina, ou que aprendera medicina lendo Aristóteles mas sem observar o doente. De modo que a suspeita filosófica quanto à razão não se tratava de uma rejeição à racionalidade em si, mas sim de uma rejeição à razão isolada dos sentidos e alienada do corpo passional. Nesse sentido os filósofos iluministas estavam na verdade mais próximos dos românticos do que estes gostavam de acreditar.

Generalizações sobre movimentos intelectuais são sempre perigosas. O Iluminismo teve características nacionais distintas, e mesmo dentro de um único país não era monolítico. Alguns pensadores evocavam uma estrita dicotomia entre razão e paixão, e privilegiavam aquela sobre esta- o mais famoso sendo Kant. Mas nesse quesito Kant estava isolado de muitos, se não da maioria, dos grandes temas de sua época. Particularmente na França racionalidade não era oposta à sensibilidade mas eram contíguas. O Romantismo foi em grande medida uma continuação do tópicos do Iluminismo, não uma quebra ou ruptura deles.

Se quisermos curar as divisões do momento histórico contemporâneo, devemos deixar de lado a ficção de que a razão sozinha "salvou o dia". Os tempos presentes pedem espírito crítico, mas isso não ajudará se for baseado no mito de um glorioso passado desapaixonado, coisa que nunca foi.


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