terça-feira, 18 de outubro de 2022

De velas e manhãs. E o trânsito das estações.


No Facebook, postei Coração-de-corvo do povo Mandan das Grandes Planícies e sonhei com três espíritos totêmicos. Rostos graves e austeros, algo de incisivo, cada qual coberto de tinta — azul, amarelo e vermelho. Um recado cada um, uma frase, um lembrete, uma lição. Escusado dizer que ao acordar não me lembrava de rigorosamente nenhuma palavra do que me diziam. 

Não gosto do que é hermético. Digo ocultismo porque é assim para quem não busca, porque se você busca deixará de ser oculto. Busca e acha, diz Jesus, e com um pouco mais de dois neurônios qualquer um pode se aprofundar em segredos supostamente arcanos. O que fará com isso é outra história, se é que há algo aí do que fazer.

Dito isso, rejeito os donos da verdade e a ditadura das vozes autorizadas. 

É que vi no Youtube um dirigente juremeiro desaconselhando velas e firmezas em casa — casa domicílio, bem entendido — antes da "formação" do devoto porque é perigoso etc. e tal.

Falas de tal jaez são problemáticas por diversos motivos.

Primeiro, dizer que velas e oferendas, como cachaça, feitas sem o devido preparo "atraem" espíritos mal intencionados, é fugir do kardecismo mais elementar: afinal, explica Kardec que não há nada a ser atraído porque os espíritos já estão aí pululando ao nosso redor.

Os não encarnados ou errantes não ocupam uma região determinada e circunscrita; estão por toda parte no espaço e ao nosso lado, vendo-nos e acotovelando-nos de contínuo. É toda uma população invisível, a mover-se em torno de nós.

(no "Livro dos Espíritos", edição da Federação Espírita Brasileira)

E Kardec, e é por isso que no ponto me referencio nele, foi quem melhor estudou o fenômeno mediúnico, ao menos de forma pretensamente científica, positivista oitocentista que era. Antes disso havia o empirismo das práticas ancestrais, respeitável decerto, mas carecedor de sistematização.

Além disso o veto de velas e oferendas em casa vai de encontro — e não ao encontro — das tradicionalíssimas práticas da religiosidade popular. Católicos e umbandistas têm sempre suas velas acesas no recinto doméstico. Aprendi que isso não se faz para desencarnados; mas para o anjo da guarda, mestres e guias, que mal fará? É uma prática antiga, como dito. Também aqui há que encontrar o diálogo entre a prática antiga e a teoria, mas no ponto não estão em contradição.

Outro motivo é que isso apela ao argumento de autoridade. Não faça nada a não ser que o pai de santo autorize; não faça nada a menos que isso ou aquilo. Ou seja, o diálogo com o sagrado se torna uma burocrática sucessão de ritos espartanamente controlados. Um mago do caos jamais poderia aderir a essa abordagem. Somos por princípio anárquicos em nossas práticas mágickas. E o que há de novo nisso, se desde o século XVI Martinho Lutero acabara, na Reforma, com a intermediação entre o homem e Deus? Cessemos de vozes autorizadas. O mundo espiritual e o material é o mesmo e transitamos entre eles. Para que formalidades? Desrespeito é outra coisa, mas desrespeito nem à mais mísera criatura devemos votar.

E por favor não me entendam mal. Rejeito a autoridade mas me referencio em Kardec; contraditório? Acho que o ponto é a justa medida. Não relativizo saberes, ao contrário, há mesmo vozes autorizadas; o estudo, a experiência etc. dão esse status. O problema não é a voz autorizada e sim a autoridade, a imposição de cima para baixo. Magister dixit! Rejeito isso com todas as forças. Mago do caos e, na política, comunista, trotskysta em especial — sou inimigo jurado dos stalinismos do espírito.

Mas agora os olhos rolam na caixa do crânio, naquele sono modorrento das viagens de ônibus. Trotando pela estrada. Naquele torpor uma nova mitologia surge para mim, algo como um ramayana confuso com deuses loiros apontando os dedos como Adões de Michelângelo.

Crio mitologias em minh'alma: uma cosmogênese absurda.

Que seja, cá estamos em outro dia. 

Manhã nublada de feriado de meio de semana. O sonho antes do despertar foi doméstico e urbano, interrompido pelo alarido na área interna do condomínio. Nublado, já citei; choveria depois mas por enquanto 

o ar parece lã molhada.

(David Foster Wallace, "Isto é água")

É o clima que para mim é medieval e, intimista, nos leva a reflexões. Olhar para dentro, digamos. Mais tarde fui comprar pão e a sensação ainda me seguia, já agora juntamente com a fina garoa.

Manhã ensolarada, e aqui me refiro a outro dia. Já não mais medieval, o clima é todo nordestino, aquele canto do país que remete a céu azul e a um sol de amarelo claro. Conheço essas manhãs, já andei muito por aqueles lados. É o clima de fim de ano e de férias escolares, a efervescência, ainda discreta mas já em expansão, das festas carnavalescas que se aproximam.

E é assim que costuma ser a vida, transitando entre estações.  

A imagem do post é de @andresuran no Unsplash.