sábado, 10 de dezembro de 2022

As filhas do rei da Turquia. E sobre liberdade.


Busco as encantarias do Nordeste. Aquele sacerdote em trajes mouros paira sobre minha cabeça; o manto, escarlate, tem bordados em ouro e esmeralda. Usa turbante tal como imame dos Ahl al-Bayt fosse. Nos dedos de rei Salomão, aneis das pedrarias mais diversas – agrada-me o vermelho escuro como vinho, e também o azul cor de mar e, apesar dos rápidos gestos, percebo o amarelo luz de manhã.

Do que fala, o sacerdote?

Uma lenda sobre três princesas, filhas do rei da Turquia, que, fugindo da invasão cristã à Terra Santa, se perderam lá pelas bandas de Gibraltar. Encantaram-se, atravessaram o limiar. Não são mais daqui e sim de outra realidade não acessível aos sentidos. E foi nesse estado que chegaram às costas brasileiras antes dos portugueses. Os tupinambás – daqui ou também do outro mundo? – receberam aqueles turcos extraviados. Que encontro de culturas não deve ter sido! Alguns dos turcos se "ajuremaram", isto é, adentraram a jurema, a mata, e deixando para trás o invólucro maometano se tornaram índios de corpo e alma. Novamente, que corpo? O daqui ou...?

E o sacerdote do tambor de mina segue sua narrativa. Já não posso acompanhar as palavras; minha alma vaga pelas brechas do espaço e do tempo, capturada por anomalias cósmicas dos tempos de Saladino e Ricardo Coração de Leão.

Já sendo madrugada, agora novamente leio histórias de príncipes e princesas. É a "História do Império; A Elaboração da Independência" de Tobias do Rego Monteiro, 1927. O inventário do que somos, como diz Gramsci, as loucas cavalgadas do jovem Pedro e as fantasias virginais de Leopoldina enviada, por convenções entre os homens, às terras brasileiras. Metternich, astuto diabo, é citado já na introdução do "Manifesto Comunista" de Marx e Engels. Homens de tal jaez aquiesceram na união entre as Casas austríaca e portuguesa e ei-los pais da independência, senhores deste portento continental que é nosso país. Por pouco tempo; Pedro retorna às lusitânias terras e à sua coroa. O que somos seguirá sendo – e 

por menos heroica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la uma realidade.

(Karl Marx, "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte")

E cá estamos, décadas adentradas do século XXI. Lula derrotou o bolsonarismo nas urnas, avante, minha estirpe! Não o ufanismo dos canalhas mas o sentir na carne a urgência da marcha civilizatória. Temos pressa, temos pressa. 33 milhões de brasileiros passam fome no Ano da Graça de 2022. Temos pressa...

Mas e tu, rei das matas?

Agora me refiro a Malunguinho, chefe quilombola do Catucá em Pernambuco. Isso inícios do séc. XIX e inevitavelmente ligado à Confederação do Equador de Frei Caneca. Lutas pela liberdade, pois. República e abolição; o sentimento, atávico, por emancipação, direito inalienável do homem.

E é no exercer desse direito que Malunguinho desaparece. Não, não – não poderiam matá-lo. Encantou-se. Desapareceu, como Dom Sebastião, e doravante está no limiar, guardião da jurema, a mata, ele e os terrígenos companheiros, agora Reis Malunguinhos, nobre falange que vela a luta dos homens.

"Malunguinho na mata é rei". Meu saravá. 

A imagem é "Estudo para 'Frei Caneca'" de Antônio Parreiras, 1918.