sexta-feira, 12 de maio de 2023

De rascunhos e oceanos


Eu deveria ter escrito isto no final do ano — afinal, tenho anotado aqui nos rascunhos coisas como "Carta do dia - O Sol", "Início do verão - 21 de dezembro" e "Comunismo solar". São ideias que se imbricam, portanto. Sobre o comunismo solar se trata de uma referência a Löwy e seu ecossocialismo, o futuro, tolos chamarão utópico, do pleno aflorar das potencialidades humanas em um planeta ecologicamente restaurado. Não é possível falar em socialismo nestas tumultuosas primeiras décadas do século XXI sem que se lhe grafe em letras verde-primavera.

Enfim, elementos soltos registrados para momentos mais propícios. Decerto todo escritor faz isso. Com a internet é muito mais fácil; basta sacar o telefone do bolso e digitar a ideia no bloco de notas. Uma palavra, uma frase. Algo que vimos de relance; talvez uma paisagem rápida na janela do automóvel. Trocas de olhares. Folhas de árvore caindo? E também bitucas de cigarro no meio-fio. A musa é generosa, lança inspiração por toda parte.

Às vezes a inspiração nos leva embora. Por exemplo, agora estou de pé num promontório no Oceano Pacífico. Não há vivalma, com exceção de, diríamos, fragatas e albatrozes ao longe. Sou a única inteligência humana num raio de quilômetros. Lembro agora no assombro de Fernando Pessoa:

As solidões marítimas como certos momentos no Pacífico
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!

("Ode marítima")

Qual é a sensação desse isolamento extremo? Em termos tarológicos penso na solidão do "Enforcado", como náufrago isolado do mundo, compulsoriamente e não por gosto próprio; isso é, não o "Ermitão", a busca madura pelo retiro contra a azáfama do mundo.

Ainda mares, mas outro cenário. Costa de Gales, neblina de manhã, luz dourada, observando navios dinamarqueses. O dia solar ainda aparece, mesmo que turvo em neblina, e a ambiência nos remete aos tempos épicos do século IX. Não há nada no meu sangue, até onde sei, que me leve àquelas paragens. Mas é um ambiente de sonho que fala fundo em minha alma. Já escrevi sobre isso, inclusive fazendo minha versão portuguesa do Englynion y Beddau. Merlin me aparece em sonhos. No mais recente, mostrava-me uma eficaz proteção contra vampiros, um cajado nodoso repleto de penduricalhos, a cruz cristã inclusive, afinal desde o século IV os missionários já grassavam em Gales e é burrice abrir mão dessa magia também poderosa.

No parágrafo anterior, "fala fundo". Corrigi porque escrevera "fala mundo". Ato falho freudiano. 

Domingo choveu e passei a tarde lendo sobre Tolkien e fadas. 

A imagem que ilustra o texto foi gerada pela DeepAI com uma mãozinha do ChatGPT.