sexta-feira, 28 de julho de 2023

A dança no reino das pedras. E de heroísmo.


Quando operei a tireoide sonhei com uma entidade que habitava um mundo de pedras — calcárias, brancas, um reino de giz de quadro-escolar — e usava máscara, das tribais. Dançava e agitava o maracá, talvez usasse guizos na canela mas o tempo apagou os detalhes oníricos. Eu tinha levado o "On the road" de Kerouac para ler no hospital mas evidentemente não consegui. Já em casa, ainda sob os efeitos dos anestésicos, eis o sonho com a entidade-de-máscara-guizo-e-reino-de-pedra-branca.

Gostei do Kerouac. A literatura beat, marginal, corrida, underground, me encanta. Na mesma época, por volta de quando tive o diagnóstico que me levou à cirurgia, descobri Bukowski. Não propriamente um beat mas de inegável parentesco, ao qual poderíamos acrescentar Henry Miller, esse resolutamente há anos meu escritor favorito. Os "malditos"! Hoje exercícios pueris mas que no passado escandalizavam os burgueses.

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor

Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

(Manuel Bandeira, "Poética")

Penso que é fundamental que haja identificação para que a literatura prenda o leitor. Os "campeões em tudo" de Pessoa são um saco. Já falei neste mesmo blog sobre como, quando descobri os quadrinhos de Western, os herois que me encantavam eram os que tinham crises, amavam e morriam. O implacável é irreal; não somos assim no nosso cotidiano. Ainda que se diga que o heroi exerce uma função transcendente em relação à nossa limitação humana, a jornada começa corriqueira. O heroi nesse sentido é insuspeito; tem a missão diante de si, em germe — como Garaudy diz do caminho de Arjuna, "em germe" no olhar de Krishna — mas a dúvida e a insegurança sobre suas capacidades, possibilidades e aptidões são o início de tudo. Então ao longo da trajetória o heroísmo se mostra. Encontrado? Reencontrado? Nasceu ou simplesmente despertou? Essa trajetória se confunde com a própria vida que é, como sabemos, a busca constante pelo "ser quem somos", um processo que

corresponde ao decorrer natural de uma vida, em que o indivíduo se torna o que sempre foi. Ε porque o homem tem consciência, um desenvolvimento desta espécie não decorre sem dificuldades [...]

(Carl Gustav Jung, "Os arquétipos e o inconsciente coletivo", trad. Maria Luiza Appy e Dora Mariana R. Ferreira da Silva)

Não decorre sem dificuldades!

Não mesmo.

O pequeno Frodo treme diante da tarefa. Nunca nos sentimos preparados, afinal de contas. O ponto é que talvez nunca estaremos e, se tivermos isso como determinante, jamais sairemos do lugar. Pé na estrada! On the road! O caminho se faz ao caminhar, não é assim que diz aquela frase batida?

Frodo agarra firme o Anel e ruma para Mordor. Todos nós temos nossa Mordor diária a conquistar. É portanto que, no fim das contas, o invencível heroi implacável não faz o menor sentido: é que herois somos todos  nós, em nossas imperfeições humanas.

A imagem do post foi criada digitalmente pela Stable Diffusion, e nem de longe se equipara ao reino da minha entidade de sonho.