sábado, 12 de outubro de 2024

De criatividade, e o quarto da costureira


Uma calça precisava de reparo e precisei de uma costureira. Encontrei uma no caminho do Anil, na rota que sempre faço. Não propriamente um estabelecimento, mas uma portinha que dava para um pequeno aposento, aberta diretamente para a rua, quase às margens do canal e sob a sombra da amendoeira.

O que há em quartos de costureiras que tanto abala meus sentidos? Pedaços de tecido pelo chão, peças brilhantes, fitas, linhas, carreteis. É uma onda criativa que se espalha por todos os lados. Gauguin chocava-se com a disposição caótica das tintas de Vincent. Também na pequena sala de trabalho da costureira as cores se derramavam em profusão e penso aqui em algo ainda mais profundo — em minha imaginação ao menos —, como o Nordeste e suas cavalhadas e encantarias, ou a Copacabana, mais próxima e caseira, da infância nos anos 80 ...

... assim: é chuvoso e olho pela janela, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana lá fora. O edifício ficava ao lado do cinema. Estávamos na costureira da minha mãe, era uma peça que precisava de ajuste, algo assim, não me importavam as conversas dos adultos. Tinha cá comigo uma revista em quadrinhos com o Doutor Estranho. O mestre das artes místicas! Enquanto as mulheres tratavam dos ajustes em roupas, passei a tarde chuvosa em meio a passes de mágica e dimensões alternativas. Já comentei em outros espaços a influência cultural e emocional que as histórias em quadrinhos tiveram em minha vida. Não é desarrazoado pensar que o mago que sou, décadas depois, é tributário dos combates que enfrentei com o Doutor Estranho nos quadrinhos lidos no apartamento da costureira de Copacabana — sobretudo porque magia, como a defino, é arte, assim como os retalhos coloridos de tecido pelo chão constituíam todo um mosaico artístico.  

A púrpura sintética de Perkin. Estou cortando abruptamente a lembrança porque isso também é arte e magia. É que li fascinado sobre a raridade da cor púrpura, como era algo da nobreza, nobres, lordes e reis, imperatrizes e seu esplendor. William Perkin, como um Prometeu, coloca a cor à disposição dos reles mortais. Sintetiza a mauveína, aquele tom que não é mais vermelho e tampouco azul, uma síntese dialética do quente e frio.

Já falei dessa cor aqui no blog. Era 2019, também no mês de outubro das bruxas, e tudo ao redor emulava essa tonalidade. Hoje, novamente, eflúvios púrpuras bailam no ar, como agora quando estico o olhar pela janela para o prédio na esquina, banhado de um suave violeta.

A bagunça no quarto da costureira e os violetas nas luzes dos prédios são exemplos de como a arte pode ser extraída de toda parte, basta olhos de ver, como nas parábolas evangélicas. Arte e parte rimaram mas não foi intencional. Aprofundando a ideia é a própria magia que circula ao nosso redor, e também nisso precisamos ficar atentos, caso queiramos captar os insights. Na urban magick talvez até a numeração dos edifícios tenha algo a dizer. Em uma vida repleta de caos criativo, como gostaríamos que fosse a nossa, a costureira pode ser, quem sabe, insuspeita feiticeira.