sábado, 18 de novembro de 2023

Do amor que não veio e sufis girantes


A resposta demorou e o sinal amarelo foi aceso em minh'alma. Sem afobação, falamos para nós mesmos, mas as coisas do coração não funcionam assim — não seriam do coração se não fossem afobadas. Enfim a resposta veio mas polida, quase seca. Foi então que compreendi que não, que o Amor não viria. Isso na quarta. Na sexta já nos amassávamos no cruzamento sob as luzes da fachada da farmácia. O Amor veio, enfim. Se ficará? Do sábado em diante tudo são cinzas mornas. O Amor tem seus próprios caminhos. Nada resta; apenas a impressão indelével de que não é mesmo para mim.

Penso agora em Jalal ad-Din Rumi e no Amor que, para ele, estava encarnado em Shams de Tabriz. O jovem aristocrata apaixonado por um mendigo do deserto! Não um mendigo qualquer mas um mestre sufi. O profano não consegue entender a dimensão desse Amor, desse conciliábulo de almas. Que segredos e mistérios não devem ter sido despejados aos ouvidos nessas noites persas. Só podemos imaginá-los ou, na poesia que chegou até nós — traduzida, filtrada — tentar captar esses lampejos de jade brilhante:

O Amante está sempre

bêbado
     de
          amor.

Ele é louco
ela, livre.

Ele canta com
     prazer

ela dança em
     êxtase.

Enquanto nós, presos
em nossos próprios
     medos
nos preocupamos
com tudo.

Mas uma vez

bêbados
     de
          amor

o que tiver
de
ser
será.

(Jalal ad-Din Rumi a partir da versão de Shahram Shiva. Esta minha postei aqui).

Enxergo nisso muito de engajamento; quero, estou comprometido, "juro", no poema de Maiakóvski. E como em todo engajamento há dificuldades e espinhos. O militante acredita em algo — dedicará sua vida para tornar esse algo real. Muito mais fácil é desistir e cuidar de coisas mais triviais. O amor, por exigir engajamento, é exatamente a mesma coisa. O grande problema de nossa geração pós-moderna é que as coisas andam bem líquidas, como dizem pensando em Bauman, e não há rigorosamente paciência para mais nada. Não me refiro a tolerar relações tóxicas ou dolorosas na esperança de que melhorem; nesses casos é melhor cair fora o quanto antes. Falo é da angustiante impaciência do "hoje", tem que ser hoje ou desistirei. Deparei-me com isso mais de uma vez e sempre me senti profundamente intrigado.

Construir algo.

Meu Deus, que utopia. Se não der "agora", bye bye

Que seja. Já não tenho a menor intenção de relacionamentos líquidos. É no "antes só do que mal acompanhado" que penso agora, pois para ter ao meu lado alguém que encarna o imediatismo pós-moderno prefiro ter ninguém.

Prefiro a companhia de minha mão, se é que me entendem.

Outro sufi, Hafiz de Shiraz, faz o apelo que atravessou séculos de estrelas e sândalo até aqui.

Não desista da solidão tão
     rápido.

Deixe que ela
     corte
          mais
               um pouco.

Deixe que em você
ela fermente
e amadureça
como poucos elementos
     humanos
     ou
     divinos
          podem fazer.

Esta noite
meu coração
sente falta de algo

que fez
meu olhar suave
minha voz terna

minha
     necessidade
          de Deus
absolutamente
     clara.

Não desista. Ao menos não tão rápido; um pouco mais de resiliência e vamos nos poupando de roubadas.

Dito isso, já está amanhecendo. Está quente mas a luz já insinuante tem muito de gélido, uma alvorada metálica que vai extinguindo sem dó a madrugada de reflexões. Há anos tem sido minha rotina, ver o sol nascer enquanto rumino o "só sei que nada sei" socrático, coçando a cabeça em meio a elucubrações filosóficas como um chimpanzé.  

Hoje, contudo, o sentir filosófico está embotado como se eu tivesse nadado em clorofórmio. Mas é um torpor que é todo anseio e esperança, que nada tem de dormência. Quando é assim, é difícil ficar parado. Eu para mim é pouco, diz aquele Maiakóvski. Quando é assim temos vontade de dançar. E como, pelo horário, não posso usar música, tudo que me resta é girar como um sufi pela sala enquanto amanhece.